sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Uma questão de ponto de vista

- E aí, cara? Tudo pronto?

- Tudo à pampa... vambora, vamo pegar a estrada logo...

- Você... você tá levando... aquilo?

- Sim, tá numa caixinha dentro da minha mala. Eu mesmo preparei hoje de manhã. Tô te falando, o negócio é de qualidade...

- Da hora, da hora...

- Usei chocolate suíço pra fazer, e aquele leite condensado extra cremoso...

- Putz, tá forte o bagulho... temo que ter cuidado pra não dar bandeira, hein...

- Relaxa, relaxa, você sabe que eu sou de boa...

- Você acha que não tem perigo da polícia parar a gente?

- A essa hora da manhã? E também, se pararem, qual o problema? É só agir natural... não sei se você sabe, mas nem todo mundo que vai pra praia no feriado é brigadeireiro.

- Putz, tô ouvindo uma sirene... ai, caralho, por que é que eu tinha que falar nisso... tão me mandando parar. O que que eu faço?

- Relaxa, cara, relaxa... oh, o tira tá vindo aí... não vai entregar o jogo, hein!

- Bom dia, bom dia....

- Bom dia, senhor.

- Indo pro litoral?

- É... faz tempo que não tem feriado, né? Tem que aproveitar...

- E vocês vão ficar aonde?

- Um amigo nosso tem casa em Maresias...

- Certo, certo... o senhor poderia mostrar o porta-malas? O senhor entende, só estou realizando uma vistoria padrão....

- Claro, claro, por que não? Um momentinho...

- Certo, certo... eu posso abrir a mala?

- Claro, claro...

- Hmmm... hmmmm... e o que é isso aqui nessa caixinha, você pode me explicar?

- Isso? Não é nada, senhor... é só maconha....

- Maconha, é? Sei, sei... olha, pra mim isso aqui tá com cara de brigadeiro!

- Brigadeiro? Não, senhor... imagine, eu, levando brigadeiro na mala? Não, eu tô falando, senhor, isso aí é maconha...

- Sei, sei. E a vovó não mandou ecstasy e LSD também, por acaso? Eu reconheço um brigadeiro quando vejo um, rapaz. Bom, vamos ver como vocês explicam isso pro delegado. Alfredo, leva esses dois pra viatura. César, pode fazer o B.O., nós vamos apreender isso aqui.

- Sim, senhor. É quindim, senhor?

- Não, não, felizmente não é nada desse tipo. Só dois moleques levando brigadeiro pra praia. Parece que esses adolescentes só conseguem se divertir se for com doces... e o desgraçado ainda tentou me convencer que era maconha.

- Logo se vê que os dois são iniciantes... quer dizer, o pessoal geralmente esconde doces dentro de papelotes de cocaína... mas esses aí tavam simplesmente levando o brigadeiro na moral, como se fosse crack ou algo do tipo.

- Bom, pelo menos eles ainda não partiram pra paçoca ou pro mocotó.

- Mas com essa juventude, nunca se sabe... Ei, chefe, posso te perguntar uma coisa?

- O que foi, César?

- O senhor é a favor da legalização do brigadeiro?

- Você quer minha opinião como policial ou como pessoa?

- Como pessoa, claro.

- Olha, acho que as pessoas devem ser livres pra fazer o que bem entenderem, sem que precise morrer gente no tráfico para isso. Quer dizer, já está comprovado que o açúcar faz mal para a saúde, não está? Se as pessoas quiserem consumir mesmo assim... bem, o problema é delas, não meu.

- Esse mundo seria um lugar melhor se todos pensassem como o senhor sobre o açúcar, chefe...

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Pré-escola

- O que é o seu desenho, Pedrinho?

- É o Sol, professora.

- Que lindo Sol, Pedrinho! E o seu, Renata?

- É a minha mamãe...

- Puxa, que lindos os cabelos verdes da mamãe! Vejamos o seu, Roberto... nossa, quantas cores! O que é isso?

- É uma composição abstrata com tendências cubistas que representa a complexa inter-subjetividade humana, que molda dinamicamente as sociedades e os indivíduos de acordo com um Ethos cambiante dirigido por valores em constante transformação.

- Que gracinha, Roberto! Está muito legal, mas que tal você desenhar a sua família ou o seu animalzinho de estimação?

- Tola, mil vezes tola! “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!”, disse Salomão. A disposição de pigmentos em um papel jamais poderia encapsular a essência objetiva da realidade; o Homem é um triste animal cego, tropeçando pelo mundo e tentando em vão defini-lo, encontrar um lugar, prender em seus livros e em sua moral e em seus costumes a matéria fugidia e elusiva que compõe a existência. Para quê curvar-se à ilusão de que é possível capturar a serpente esguia, criar uma ilha de racionalidade em meio ao caos? Do pó viemos e ao pó voltaremos, e tudo o que se passa nesse interregno são meras mudanças de estado físico! Adeus, corja de paralíticos presunçosos! Prossigam sem mim na doce ilusão de viver no inferno o paraíso!

- Crianças, o papai e a mamãe não precisam ficar sabendo que o amiguinho se jogou pela janela, combinado? Agora, quem quer ser o próximo a mostrar o desenho?

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Ode ao Tietê

Oh! Formoso manancial
Carregas à tua mercê
Até a mais orgulhosa nau
O teu nome: Tietê

Refúgio dos esbaforidos
Oásis oportuno
Já foste, em tempos já idos
A jóia de Netuno

Hoje tens o próprio valor
Libertastes-te do deus mesquinho
Nos encanta com o candor
Do teu doce burburinho

Tietê! És o resumo
De tudo quanto é belo e bom
Do teu curso o aprumo
É certamente o maior dom

Tuas águas fulgurantes
Abrigam ninfas em seu seio
Das tuas margens reconfortantes
A visão me dá anseio

És perfeito, belo rio
E lendária é tua glória
És símbolo do Brasil
E emblema da vitória

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Três condições curiosas

O homem que desenhava na água


Na infância, não se poderia dizer que ele fosse dotado de um espírito particularmente artístico; nunca havia se interessado pelas caixas de tintas e lápis de cor com as quais sua tia, que era pintora, teimava em lhe presentear todo Natal. No dia das mães, todas as outras crianças chegavam da escola com coloridas pinturas a dedo, com amontoados difusos de tinta que, nas palavras entusiasmadas dos pequeninos, representavam a mamãe como uma rainha linda ou lutando contra alienígenas; já ele limitava-se a dar um abraço e um beijo.

Certo dia, no entanto, quando sua mãe foi colocar a ração do cachorro, surpreendeu-se ao ver a imagem de um barco à vela flutuando na superfície da água da outra tigela. Olhou para cima e confirmou que aquilo não era o mero reflexo de uma imagem; com o dedo, ela agitou a água, mas, cessadas as perturbações, a imagem do barco continuava lá, como se certas moléculas de água houvessem se tornado coloridas e estivessem mantendo a mesma posição no espaço.

Alguns dias depois veio a solução do enigma da figura na água, tão estarrecedora quanto o caso em si: ao entrar no banheiro, a mãe encontrou o filho na ponta dos pés em cima de uma cadeira, debruçado sobre a borda da pia; ao aproximar-se, ela constatou boquiaberta que ele estava desenhando na água da pia, que estava cheia e conservava-se assim porque um tampão vedava o ralo. Quando ele deslizava o dedo pela água, a superfície se coloria e ia formando um desenho.

Com o passar do tempo, ele foi aperfeiçoando sua estranha arte; passou a desenhar em corpos d’água mais amplos. Certa vez usou uma fonte para criar uma fantástica pintura em movimento; no aniversário de sua melhor amiga, trabalhou por um fim de semana inteiro usando uma roupa de mergulho para criar uma pintura tridimensional na piscina da sua casa; quando o Natal se aproximava, usou um pequeno bote para desenhar uma enorme pintura abstrata no lago da cidade, e quando sua superfície se congelou as pessoas podiam patinar no gelo e desenhar sobre sua obra com os rastros de seus patins, tornando-a uma criação coletiva.

Sua renda mensal era alimentada por diversas contratações para elaborar a decoração de festas e eventos e criar efeitos para filmes. Quando a NASA desenvolvia os primórdios de seu programa espacial e enfrentava o problema de como estabelecer comunicação com astronautas em órbita ao redor da Lua, considerou contratá-lo para escrever gigantescas mensagens no oceano que pudessem ser lidas pelos tripulantes das naves espaciais; esta opção foi descartada quando argumentou-se que os astronautas não teriam meios de responder as mensagens. Em uma ocasião, ele sobrevoou de asa delta uma grande cidade, atravessando as nuvens carregadas suspensas sobre ela; naquele dia, a chuva foi colorida.

Quando ele percebeu que já havia levado sua arte ao extremo do requinte e as suas possibilidades já estavam quase esgotadas, decidiu que estava no momento de produzir sua obra final, algo que já planejava há muitos anos. Em um dia nublado, alugou um pequeno barco a vapor e partiu sozinho para o mar; desejava criar uma pintura que cobrisse todo o oceano, que transformasse a aparência do próprio planeta Terra.

Nunca mais foi visto, mas até hoje fragmentos de pinturas chegam à praia carregados pelas ondas, persistem por segundos na areia e então desvanecem.

O sinesteta


Vladmir era um sinesteta. Mas não no sentido que os neurocientistas costumam atribuir ao termo, utilizando-o para descrever casos curiosos de sua profissão na qual um embaralhamento das atividades das diferentes zonas cerebrais cria associações entre percepções de diferentes sentidos; não, Vladmir realmente experimentava a realidade de uma forma diferente, inimaginável para qualquer ser humano comum. Em sua mente não existia uma distinção clara entre as informações que ele captava através de seus sentidos; o mundo, para ele, era um sistema unívoco, composto por percepções integradas.

Ao contrário das outras pessoas, que destrinchavam a realidade, separando-a em categorias de percepção como “visual” ou “auditiva”, Vladmir sentia um único ritmo harmônico que abarcava tudo ao seu redor; era como se ele ouvisse – ou melhor, sentisse – uma orquestra inteira, enquanto os outros podiam apenas ouvir violinos ou pianos.

Com o passar dos anos, no entanto, ele tornou-se capaz de controlar a forma como sua mente registrava as percepções unívocas que chegavam a ela. Dessa forma, ele conseguia simular a condição humana comum, percebendo os elementos da realidade através de um único sentido; porém, como as limitações da percepção humana convencional nunca o haviam restringido, seu modo de sentir o mundo quase sempre diferia do convencional. Ele podia, por exemplo, ouvir as pessoas, ao invés de vê-las; se ele as via como uma sinfonia, era sinal de que estavam atravessando um momento de conflito; se as via como uma sonata, era sinal de que estavam apaixonadas.

Sua primeira namorada fora um aroma de camélia; o dia em que sua mãe morreu, uma queimadura profunda. Certa vez havia tentado aventurar-se nas artes, para tentar exprimir a forma como via o mundo; ao contrário dos outros que haviam se lançado em tal empreitada no passado, no entanto, o seu modo de viver era exclusivo demais, e uma comunicação não podia ser estabelecida com os espectadores. Van Gogh nunca chegou a ser compreendido em vida, mas pelo menos ele via imagens e ouvia sons, e produzia sua arte segundo essa separação fundamental; já a obra que Vladmir produzira não era nem uma música, nem um livro, nem um quadro nem uma coreografia, mas sim uma espécie de absurda mistura entre todas essas mídias, algo que causou um estranhamento profundo em todos aqueles que presenciaram sua execução e mais de uma proposta de internação em um manicômio. Desolado, ele desistiu da vocação artística e nunca mais apresentou aquilo que, segundo fontes, ele chamara de “Dó Ré Mi Verde”.

A habilidade de Vladmir foi finalmente valorizada quando seu estranho caso chegou ao conhecimento de um membro do alto escalão da CIA, que percebeu que sua percepção diferenciada da realidade poderia ser usada a serviço da segurança nacional. Ao ver as pessoas na forma de música, por exemplo, ele desnudava as camadas mais íntimas do indivíduo, e poderia perceber terroristas em potencial; da mesma forma, percebendo visualmente os cheiros ele poderia identificar vazamentos de gases nocivos ou rastrear carregamentos de drogas.

Vladmir morreu tragicamente enquanto liderava uma operação anti-bombas; como ele via os fios “trinado de pássaro” e “gosto de lasanha” ao invés de “verde” e “vermelho”, ele cometeu um equívoco e infelizmente cortou o fio errado.

O assassino metalingüístico



Não habitava uma dimensão propriamente dita; seu reino era a dimensão entre o real e o imaginário. Sua existência dependia da ação criativa de um outro; não possuía corpo, e só se cristalizava em um ser quando algum escritor pressentia sua presença e o encarnava em um personagem, transmutando-o em uma nova aparência e adequando as nuances de sua personalidade ao novo avatar.

Dessa forma, já havia sido o capitão Ismael, na frenética caça à Moby Dick; o Professor Moriarty, constantemente tramando contra Sherlock Holmes; Phileas Fogg, em sua ousada volta ao mundo em 80 dias; Tom Sawyer, Jay Gatsby, Auguste Dupin, Horacio Oliveira, Ulisses, Werther, Bento Santiago...

Ao ser novamente despertado de sua catalepsia para ingressar no mundo palpável da palavra escrita, aproveitou-se de uma inédita obscuridade proporcionada pela ausência de descrições para infiltrar o mundo real sorrateiramente, galgar as escadas munido do punhal e adentrar incógnito o quarto onde o insuspeito escritor, crente na ficcionalidade de seu relato, perpetrava o seu ofício momentos antes de ser brutalmente assassinado, deixando inconclusa sua obra e dissolvendo assim a existência de seu próprio assassihwrij9q3t-h

domingo, 9 de novembro de 2008

Entrevisões de um mundo a parte

Uma das coisas mais estranhas que existem é aquele momento entre a vigília e o sono, quando a barca de Morfeu já deixou o porto mas você ainda não está totalmente hipnotizado pela viagem e ainda consegue - com algum esforço - processar conscientemente o que está acontecendo. Estes momentos possuem toda a magia onírica de um sonho, com a diferença de que você tem um certo sentimento de controle - não parece um filme ao qual você está assistindo, mas sim algo que você realmente está pensando, por mais absurda que a lógica desses pensamentos seja.

A parte triste é que, quando você realmente se dá conta de que um desses momentos está acontecendo, geralmente você acorda e acaba esquecendo em questão de instantes o que estava pensando. Tive a sorte de conservar na memória uma dessas divagações, ocorrida na quinta-feira passada; compartilha-la-ei enquanto não me disponho a preparar algo melhor para a publicação neste diário virtual.

Era basicamente o seguinte: eu comecei a pensar que havia um certo homem, ao qual todos se referiam como "Mr. Robert", que todas as pessoas do planeta conheciam. A opinião pública sobre Mr. Robert era unânime: todos o admiravam. Sua notoriedade acabava gerando certas situações que pareceriam inusitadas a nós do mundo real, que não estamos acostumados com a onipresente celebridade de Mr. Robert; por exemplo, em uma certa ocasião na qual ele aparecia na TV junto com uma figura cujo renome é para nós absoluto - o Pelé, por exemplo (não lembro exatamente quem era, só lembro da situação) - uma pessoa que assistia perguntava, desinteressadamente: "Quem é aquele negrinho do lado do Mr. Robert?"

Bom, é basicamente isso. Espero ter conseguido apresentar a vocês uma pequena curiosidade recolhida diretamente do vasto mundo inexplorado do inconsciente.

Uma boa noite a todos (ou não, porque quem dorme bem nunca consegue acordar no momento propício para lembra desse tipo de coisa).

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Sobre andar por aí com um abacaxi na cabeça

Ninguém poderá negar as inumeráveis vantagens de se andar com um abacaxi na cabeça, e só fecharão os olhos para o grande bem que se pode extrair dessa experiência única aqueles que são por demais sisudos para resistir à classificar esse saudável hábito como infantil e moralmente repreensível, incabível em um homem sério e de bom caráter.

Deixando de lado o problema da resistência à essa atividade (que pooderá, afinal, ser combatido com um simples argumento lógico: em quê o ato de andar com um abacaxi na cabeça é diferente, por exemplo, do ato de andar com um aro de metal ao redor do pulso ou com dois cilindros de pano ao redor das pernas?), passemos à descrição da aividade em si. Como sempre, uma imagem diz mais do que mil palavras, e portando será imprescindível que o leitor imagine (imaginar: imagem+ar; munir-se do giz de cera mental e rabiscar na margem da página, conjurando em pleno ar uma ilustração para o texto, uma visão pessoal e intransferível da idéia que se entrevê entre as palavras, e já chega de interrupção) a situação prposta - isto é, deve imaginar-se andando por aí com um abacaxi na cabeça, desfrutando dessa condição libertadora e causando frisson (dissimulado com graus variados de sucesso) entre os estupefatos transeuntes.

Em primeiro lugar, é importante fazer uma observação de caráter pragmático: as variedades da fruta cultivadas nas selvas tropicais de Bornéu são as mais convenientes para este fim, pois suas grandes proporções permitem que o abacaxi possa ser encaixado diretamente na cabeça mediante a preparação apropriada da fruta (que consiste em cortar longitudinalmente a porção inferior e remover a polpa). Caso contrário, além dessa preparação será necessário implementer alguns ajustes técnicos à estrutura orgânica, como a adição de uma fivela ajustável ou de eletroimãs (neste último caso, é necessário usar uma auréola magnética ao redor da cabeça para manter o abacaxi seguramente encarapitado no cocoruto), para que se possa circular com desenvoltura sem que o abacaxi caia a todo momento.

Ultrapassadas estas primeiras dificuldades práticas, o leitor estará pronto para sair às ruas coroado por um vistoso abacaxi; durante esta etapa da concretização da empreitada há muito teorizada e planejada virá o primeiro estranhamento, e é justamente esse o grande benefício derivado da utilização do abacaxi como acessório cefálico. É claro que existe uma ampla gama de benefícios secundários, como a nutrição e hidratação dos cabelos pelas substâncias químicas encontradas no abacaxi e a extravagante quebra com a monotonia do guarda-roupa cotidiano, mas o que realmente exalta os adeptos dessa curiosa peça de vestuário é sua utilidade como martelo: um martelinho que consegue quebrar um buraco na sufocante parede do hábito e da vida cotidiana, permitindo experimentar uma fugidia noção de maravilhamento e de descrença quanto à monolítica realidade que nos é apresentada como absoluta. Ao sair à rua, ao misturar-se às pessoas e casas e árvores de sempre, o usuário do abacaxi não poderá deixar de sentir-se apartado da rotina por sua estranha condição, não poderá conter alguma versão do seguinte pensamento: "Cara, eu estou andando por aí com um abacaxi na cabeça... isso é uma espécie de desconstrução da realidade; em face disso, tudo é possível. Por que me olham com essa cara? Por que andar com um abacaxi na cabeça seria mais absurdo do que o fato de que existem pesssoas andando por aí? O que é o abacaxi, o que são as pessoas?"

Infelizmente, a cinzenta operação mental chamada costume eventualmente assimilará o abacaxi, cobrindo com o veludo do hábito o buraco no muro. Talvez o tiro até saia pela culatra; o abacaxi viraria uma moda, totalmente desvinculada de seu significado original: apenas mais um acessório, mais um atributo adquirível para tentar tampar aparentes buracos na própria personalidade; milhares de pessoas andando pelas ruas vestindo abacaxis, Gisele Bündchen desfilando impassível e blasèe com um enorme abacaxi na cabeça.

Consideração final: Nem sempre os abacaxis são frutas amarelas e espinhudas com folhas verdes pontiagudas; eles tem o fugidio costume de esconder-se sob os mais variados disfarces, como o riso de um amigo, a roda de uma bicicleta, um gorro andino ou um parágrafo de um livro.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

O grande mal de escrever as coisas a mão...

...é ter preguiça de digitar tudo depois, o que por enquanto está privando vocês de dois textos que já estão (teoricamente) prontos pra publicação.

domingo, 19 de outubro de 2008

Piadinha, meninos

Para coroar esses nove dias de absoluta nulidade acadêmica, seguem duas anedotas que ilustram as transformações que o etanol opera na criatividade e no senso humor dos seres humanos, em especial de um querido colega que preferiu não ser identificado.

"O Pelé, o Bozo e um português estavam em um avião, e ele começou a cair; porém, só havia um único pára-quedas. Por isso, o Pelé disse:

- Eu acho que eu é que devia ficar com o pára-quedas, porque eu sou o maior jogador de futebol do mundo.

Bozo retruca:

- Não, eu é que devia, porque eu sou o palhaço mais engraçado do mundo - e pula.

Aí o William Bonner diz:

- Ué, por que ele pulou com a minha lancheira?"

"Um italiano chamado Giuseppe, um Taj Mahal e um William Bonner estavam apostando uma corrida ao redor do mundo. O Taj Mahal tava de Taj Mahala, o português tava de baguete e o Chacrinha tava de abacaxi. Sabe quem ganhou? O japonês, porque ele enfiou dois pauzinhos no cu e fez VUUUUMMMM"

Enfim, existem diversas outras pérolas humorísticas desse colega envolvendo "um Taj Mahal, um William Bonner e o cavaleiro branco do cavalo preto e branco" ou coisa que o valha, mas irei me deter por aqui, porque sinto que esse insólito senso de humor já está bem ilustrado e registrado para o divertimento de terceiros. Só queria chamar a atenção para o curioso fato de que as piadas geralmente são resolvidas por personagens que não haviam sido mencionados no início, recurso literário que causa um estranhamento bastante bem-vindo na estrutura fechada e previsível das piadas consideradas "normais".

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Fragmento II

No qual se apresenta a justiça absoluta

Aposto que vocês já tinham se esquecido dessa série... recomendo que leiam o anterior para ter no mínimo algum contexto.

Acaso. Nessa única palavra se resume o grande preceito por trás da estruturação da vida. Nos primórdios, sobrevivia a bactéria que por uma conjunção de fatores aleatórios - exposição à radiação, processos metabólicos, etc. - sofresse uma mutação que por acaso a tornasse mais adaptada ao meio. Ao longo da cadeia evolutiva, essa lógica foi se reafirmando - a lógica da sobrevivência dos mais adaptados ou daqueles que calhassem de viver em ambientes mais propícios ao desenvolvimento da vida.

Quando estes seres vivos passaram a arriscar seus primeiros passos no reino da abstração, desenvolvendo esse misterioso processo ao qual chamamos "consciência", a lógica do acaso se adaptou a uma nova forma de existência; agora, conceitos intangíveis também influiam na seleção. Quando a sociedade começou a se estratificar, aqueles que (para citar apenas um exemplo), tendo a sorte de ter observado uma conjunção de fatores, houvessem realizado algum tipo de previsão, seriam aclamados como "sábios" e seriam elevados a um patamar social mais alto. Com o tempo, essa estrutura social, nascida de uma conjunção de acasos (afinal, como explicar que numa comunidade de humanos, haja uma diferenciação efetuada a partir de aspectos não-biológicos, abstratos?), se cristalizaria, distanciando-se do motivo original de sua criação em direção a um conjunto de códigos sociais que determinariam a vida em sociedade; assim, a partir de uma estrutura ditada pelo acaso, nasce um conjunto de regras que dita quem ocupa qual posição na sociedade, e quais são os direitos de cada uma das camadas sociais.

Com o tempo, algumas pessoas, indignadas com essas restrições pré-existentes a sua liberdade de desenvolvimento pessoal, passaram a chamar essa rígida estrutura social de "injusta". Ao petrificar a ação do acaso, estendendo às gerações ulteriores a organização das anteriores, impedia-se um acesso equânime às oportunidades de vida.

Pensou-se ter resolvido essa injustiça com a criação da Loteria Humana. A Loteria era a personificação da própria Justiça, diziam seus defensores; por meio dela, qualquer um poderia ter acesso a uma vida digna. Ao aproximar-se da maioridade, todos os cidadãos se inscreviam na Loteria; esta, por sua vez, sortearia o destino de cada um deles, dando chances iguais a todos.

É claro que, com o tempo, criaram-se medidas para restringir o comportamento totalmente imprevisível e caótico dos sorteios da Loteria. "Uma pessoa, afinal, deve ter o direito de trabalhar em uma área com a qual tenha maior afinidade; além disso, certos trabalhos são impróprios para certas pessoas". Dessa forma, criticava-se de forma velada a disparatosa noção de que um jovem de boa índole (leia-se, de família rica) viesse a trabalhar como gari.

Assim, os sorteios passaram a levar em conta certos parâmetros da vida dos candidatos; aqueles que comprovassem possuir vastos conhecimentos e grande erudição (leia-se, aqueles que não precisavam trabalhar desde cedo e portanto tinham tempo e dinheiro disponíveis para adquiri-los) eram, segundo a lógica dos defensores das reformas na Loteria, obviamente mais apropriados para cargos de caráter administrativo ou especializado. Na prática, o que isso significava é que o resultado da Loteria acabava dependendo justamente dos fatores que ela se esforçava em combater.

É claro que havia aqueles que tentavam aproveitar-se dessa lógica, lutando ao longo dos seis ou doze meses anteriores ao sorteio para adequar-se o máximo possível ao perfil de indivíduo que costumava ser sorteado para os cargos prestigiosos; tudo o que importava era abandonar-se cegamente a um modelo, derreter sua própria estrutura para caber no molde fornecido.

Henrique, no entanto, caminhava orgulhosamente em direção ao prédio em forma de balança que sediava a Loteria; ele havia se recusado a curvar-se a essa vontade cega, a esse elogio da estupidez. Ele se inscreveria na Loteria e acolheria um destino incerto, tal e qual nos saudosos tempos do caldeirão biológico onde surgira a vida.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Livro do Ano

Resposta do jogo dos 7 erros (os erros estão em vermelho):

1)Linha 1: "A linguagem, afinau, (...)"

2)Linha 5: "(...) pessoal e portanto impossível de, compartilhar."

3)Linha 7: "por isso, (...)"

4)Linha 10: "(...) um ato de ousadia que poderá facilmente ser classificados como preguiça (...)"

5)Linha 11: "(...) deixo algumas indicassões:"

6)Linha 15: "(...) quando tu encontrar no bolso de uma calça (...)"

7)Trivia 2: "A capital do Usbequistão é Bishkek" (A capital do Usbequistão é Taskent; Bishkek é a capital da Quirguízia)

Eu tinha pensado em colocar aqui também algumas coisas que eu tinha escrito pra página e acabei cortando; relendo, achei meio brega. Talvez eu mude de idéia no futuro...

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Cantiga de reciclagem

(não leiam, cantem - o ritmo é o da velha e conhecida música: Teresinha de Jesus...)

Coopamare e Cooparte
eram chamadas de lixão.
Acudiram três baluartes:
Pepo, Tchu e o João.

O primeiro fez o site,
o segundo a divulgação,
o terceiro foi aquele,
que primeiro estendeu a mão.


uma singela homenagem ao Coopa que tão bem nos acolheu. acho até que posso dizer que foi uma terceira casa por alguns meses.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Caminhando de um ponto A a um ponto B

Após munir-me dos equipamentos necessários, pularei a janela do meu quarto e demolirei a parede da casa à marretadas. Prosseguirei dessa forma, destruindo quaisquer construções que me estejam diretamente à frente e afastando eventuais patifes dispostos a atravancar a empreitada brandindo ameaçadoramente a marreta. Os carros terão de frear abruptamente e desviar-se perigosamente, pois não respeitarei semáforos, faixas de pedestres ou sinalizações de trânsito. Chegando à serra, escavarei um túnel que me conduzirá através dos morros diretamente para o litoral; após abrir caminho implacavelmente entre as hordas de perplexos banhistas, chegarei à difusa zona onde o mar lambe a areia, e lá meu corpo se converterá em chumbo e desenvolverei brânquias. Subindo e descendo sinuosamente pelas planícies e depressões secretas do fundo do mar, enfim emergirei em praias estrangeiras, onde não serei detido pelos curiosos balbuciando línguas desconhecidas e tentando fotografar-me. O próximo rol de obstáculos será bastante variado, mas disporei de uma grande variedade de equipamentos para enfrentá-los: um lança-chamas para derreter geleiras, uma flecha na qual amarrarei uma corda e que atirarei no tronco de uma árvore distante para poder dependurar-me por cima de um poço de areia movediça, uma roupa de amianto para atravessar as profundezas de um vulcão, um manto bege para disfarçar-me dos salteadores do deserto. Enfim chegarei a uma remota colina, na qual acolherei o júbilo infinito deste momento único e congratular-me-ei internamente por ter percorrido a distância mais curta entre dois pontos.



Aos entusiastas que porventura estejam considerando empreender tal jornada, recomendo o simplérrimo procedimento a seguir para definir o itinerário:
1) Dependurar um mapa múndi numa parede
2) Atirar um dardo para definir o ponto de destino
3)[opcional] Atirar um novo dardo para definir o ponto de início, caso não se deseje partir da própria casa

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Ensaio sobre a visão

A luz fere os olhos; ela ofusca. Por isso, é muito mais fácil buscar o conforto da escuridão. No escuro, exalta-se o ego, a perspectiva própria, e há maior possibilidade de se esquecer a realidade circundante, de se ignorar as relações deste ego com os demais aspectos do mundo. A luz revela; a escuridão oculta. Encaremos a verdade: vivemos em um mundo demasiado cruel, que não corresponde a nossos ideais humanitários e civilizados. A todo momento tentamos escapar à esse conflito entre a realidade desejada e a observável, construindo modelos mentais da existência e prendendo-se a eles.

Mas nem tudo é maniqueísmo, é claro; por mais que se diga que com certas pessoas "é oito ou oitenta", com ninguém o é realmente. Da mesma maneira que olhar a luz por si própria - a realidade em si, e não suas manifestações; a onda de luz ao invés dos móveis nos quais ela se reflete - ofusca, a escuridão total desespera. Esse corte definitivo das relações com todo o resto (por mais ontologicamente discutíveis que elas possam ser - vide o texto de abril [caramba, já faz tanto tempo assim??] "You'll always walk alone") leva a todo o tipo de desordem mental e patologia. Já aqueles que olham diretamente para o Sol (o que inclui toda sorte de escritores, filósofos e grandes personalidades em geral) podem não queimar a retina, mas acabam fatalmente se afundando na depressão e abusando de álcool e drogas.

Não, o ser humano é uma criatura miriádica, e portanto não admite extremos; a humanidade não busca a escuridão total. Busca apenas uma iluminação sombria e difusa - o suficiente para que não perca a sua sanidade, mas que também não revele as fotografias sangrentas penduradas nas paredes. Talvez aquela criança esquelética seja apenas a nova peça da coleção de primavera da Prada; a foto dos soldados definhando no campo de batalha pode muito bem não passar de uma fotografia de jogadores num campo de futebol... não, não há nada com o que se preocupar, está tudo bem.

É aí que surgem duas forças opostas, tentando equalizar a balança mas cada uma partindo de um dos dois pontos extremos. Ao longo da história da humanidade, a mentalidade coletiva (ou seja, o grau de cinza específico de cada período, o ponto entre o preto e o branco que era consensual entre a maioria das pessoas) foi definida pela luta entre essas duas forças. Uma delas engloba atitudes como o engajamento político, o ativismo ambiental, a literatura de conscientização; a outra inclui a ficção, a alienação, a anestesiação e até (por quen não?) a arte. Desviando em maior ou menor grau a humanidade dos extremos - a insuportabilidade da luz e o desespero da escuridão - essas forças criam épocas distintas, do etéreo século XIX embebido em onirismo à engajada década de 60, numa constante oscilação em busca de um equilíbrio que inexiste porque depende de idéias em constante transformação e das ideologias vigentes. Viver apenas a realidade é descartar um aspecto fundamental do ser humano - a imaginação, a criatividade. Da mesma forma, perder-se em sonhos e abstrações significa abrir mão das bases concretas nas quais se desenrola a vida. Qual a mistura ideal? Em que doses luz e trevas devem se combinar para que possamos nos deslocar harmoniosamente pelo almoxarifado da vida, extraindo o máximo dos materiais ali dispostos e ao mesmo tempo deixando nossas marcas de forma satisfatória?

Há controvérsias.




Um esclarecimento
Na ótica ocidental, os conflitos são muitas vezes vistos como uma dicotomia maniqueísta, o famoso "bem contra o mal", "certo versus errado". Traduzindo essa lógica para uma esfera metafísica, encontra-se a oposição da luz com as trevas, representações do bem e do mal absolutos. Todo bom Cristão almeja à luz e teme a escuridão (e por "Cristão" não se está querendo necessariamente dizer "professante da fé cristã", mas sim "indivíduo educado nos valores judaico-cristãos"). A idéia do texto acima era propor uma nova interpretação desta metáfora; admito que ele acabou tornando-se uma coisa um pouco mais abrangente.

Outro esclarecimento
Com este texto, finalmente cumpro o desafio de inserir a palavra "almoxarifado" na minha próxima produção literária publicada.

Um pedido de perdão
Peço perdão pela falta de regularidade nas publicações; depois de um intervalo demasiado longo, eu e Tchubas acabamos postando um após o outro.

Outro pedido de perdão
Reparei que todos os meus últimos ensaios carregam uma visão um tanto pessimista da humanidade. Tentarei me redimir na próxima ocasião.

domingo, 21 de setembro de 2008

Viagem

Mulher: Vocês, vocês... tão precisando do que (estendendo a mão para cumprimenta-los)? Pra onde vocês vão?
Menino: Pra Minas, Minas Gerais.
Mulher: Ahn... E o que você tem a ver com o Kiko?
Menino: Bom. Eu e ele...
Mulher: (interrompe) Tá, mas isso não me interessa. Você me disse que vocês (ele e o amigo) vão para Minas, certo? Então vocês vão precisar de luvas, gorros, chapéus...
Menino: Mas lá não está/é/faz calor?
Mulher: Meu! Cala boca! Aqui sou eu quem entende do assunto! Voltando, mil coisas vocês vão precisar.
Menino2: Mas a gente não vai ficar lá milanos.
Mulher: Milão? Você falou Milão? De lá vocês vão pra Milão?
Menino2: Não!
Mulher: Bom. Se vocês vão para Milão (e isso significa que eles tem $) vão precisar de muito mais coisa: protetor solar 150, bonés, sungas, cangas, toalhas.
Menino: E quanto vai dar tudo isso?
Mulher: Uma bagatela de mil contos de réis.
Menino: Mas a gente não tem esse $!
Mulher: Meu! Vocês são em 3. Divide esses 1000 contos de réis por 3. Dá o que? Uns 483,7 contos de réis?
Menino: Certo (deve ser isso).
Mulher: Então, 483,7 contos de réis, divido pra cada um de vocês em 12 parcelas. Vocês vão levar só um ano pra pagar.
Menino: Ta bom então. São 12 de quanto?
Mulher: Meu, faz as contas né?! Não sou sua escrava! Mas vá lá! 483,7 dividido por 12, dá, arredondando uns 90 contos. 12 de 90. Ta bom ou quer mais? Quer que eu desenhe?
Menino: Tá bom, tá bom. Você me convenceu. Mas eu começo a pagar quando?
Mulher: Vou deixar você dar a primeira parcela as 13 horas. Só pra você não dizer que eu nunca te dei nada. Nossa! Olha como eu sou do bem, 1ª parcela para daqui a 3 horas.
Menino: Então ta depois a gente volta.
Mulher: Bom mesmo, truta, brother, irmão, brow, fiel, fica de boa, tudo de bom, desculpa qualquer coisa, (sua mãe é minha).
Menino: Só.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Quer jogar no meu time?

O menino estava só. A menina também, ao que lhe constava. A escola era comum, os assuntos eram comuns e até mesmo os amigos eram comuns aos dois. Em suma, tratava-se de uma comunhão.
Um amigo dele, que era também dela, certa vez fez despertar no primeiro um comichãozinho no coração. Venhamos e convenhamos todos aqui sabemos que “comer e coçar é só começar”. Ele, então, coçava ali, acolá e pensava e dizia e exclamava:
- Ui, ai, ahhh, ufa.
E parava. Mas dali a pouco recomeçava. E assim foi indo até que aquela sensação prazerosa resultou num verdadeiro e insustentável prurido e ele se viu obrigado a tomar uma atitude. Estava decidido a se confessar com aquele mesmo amigo, o anteriormente citado.
No dia seguinte, pela manhã, o carinha abordou seu, em instantes, confidente:
- João, posso falar-lhe?
- Ora pois, se já principiou.
- João, não é tempo de brincadeiras. Tenho um assunto sério a resolver e queria auxílio, talvez você pudesse me aconselhar.
- Você sabe o que dizem sobre conselhos?
- Não, o que é dito acerca dos conselhos?
- Que se fosse bom ninguém dava, vendia. Os meus, entretanto, são garantia de sucesso, portanto só os forneço mediante pagamento prévio.
- João! Você está falando sério?
- Sim, sim, sim. Pois é, pois é, pois é. O mundo gira em torno do capital.
- AH! Então enfia o capital no **.
E foi-se. Estava cheio de raiva e ainda mais perturbado, mas não ia desistir, falaria ele mesmo com ela. Reuniria toda sua coragem e chegaria junto. Lá foi ele.
No intervalo ele topou com ela no corredor e disse:
- Oi! Tudo bem, eu precisava discutir um determinado assunto com você. Seria possível?
- Claro, pode falar.
- Certo, é o seguinte. Eu jogo futebol, mas eu estou sem time. Você também joga futebol e também está sem time. Eu estava me perguntando, e agora estou te perguntando, como você poderá perceber graças à entonação da minha voz ao final da próxima frase (ou ao sinal de interrogação ao final do próximo período), se você não gostaria de jogar no meu time. E aí? Quer fazer dupla de zaga comigo?
- Ahn, eu preciso pensar. E acabei de me lembrar que eu tenho que correr até a biblioteca pegar um livro emprestado. Façamos o seguinte, a gente se encontra mais tarde, na hora do almoço, no campão. O que acha?
- Legal, pode ser. Até mais.
Ela saiu correndo como prometera e ele ficou estático observando seus cabelos cor de coca-cola esvoaçando ao vento.
Obviamente, ele não conseguiu se concentrar nas aulas seguintes, só conseguia pensar no desfecho daquela história, que ele conheceria dentro de um curto espaço de tempo, e que significaria um verdadeiro fim ou novo e belo início.
Tão logo soou o gongo ele correu sala a fora, rolou escada a baixo e tomou a direção do campão. Chegou e esperou. Sabia que estava adiantado, mas ela também estava demorando.
Putz! E o visu?
Nem se lembrara disso. Fez o que pode, deu o melhor laço de cadarço de tênis que conhecia, o nó indo-coreano, penteou os cabelos com os dedos, alinhavou suas roupas e continuou na espera.
Mais alguns minutos. A ansiedade crescia, e nada, nada dela chegar. Ele então começa a andar de um lado para o outro, para frente e para trás. Até que alguém chama sua atenção:
- Oí.
Ele então se vira, o sorriso, de orelha a orelha, estampado no rosto e se depara com:
- Oi. Quem é ele?
- Você não o conhece? Esse é meu namorado. Ele também adora futebol e no momento não está jogando em nenhum time...

Moral: No amor, bem como na guerra, e bem como em qualquer outra situação, evite ao máximo o uso de metáforas, elas raramente são compreendidas.


Obs.: Esse texto foi inspirado pela minha mais nova velha (em alusão ao fato de que, na realidade, a conheço há um bocado) best. Por esse motivo, achei justo que o mesmo a ela fosse dedicado.

P.S.: Não fiquem mal acostumados com essa história de duas postagens seguidas, ou mesmo com a volta de postagens frequentes. elas só ocorreram porque seresta me inspira por demais e merecia uma atenção especial, uma homenagem e porque o texto de hj estava pronto, esperando apenas o momento ideal a ser publicado.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Dia Nacional da Seresta

Não queria, de maneira nenhuma, que esse post fizesse com que as pessoas deixassem de ler o belíssimo texto do meu colega (logo abaixo). Entretanto, após refletir brevemente, percebi que essa minha postagem não tiraria leitores do mais recente texto do Salpicão, pelo simples motivo de que já não há leitores.
Como prova a equação matemática a seguir:

0 - x = 0 se resolvida do modo convencional e levando-se em conta apenas o universo dos números reais.

ou

0 - x = ... havia um gnomo se resolvida por Tolkien.

Bom, mas tudo o que eu falei até agora é bobagera e acho que vai acabar por ocupar mais espaço do que o que realmente me traz aqui, que é, unica e exclusivamente, desejar com muita sinceridade, amor e carinho:

UM FELIZ DIA NACIONAL DA SERESTA!!!

Espero que todos deixem aflorar em seus corações o que há de mais belo, puro e musical, nesta data tão especial. Até rimou, há de ser a arte exalando pelos meus poros.

Aproveito também para deixar um abraço maior do que o mundo à grandíssissima professora Sumiko (e isso não é um trocadilho por ela ser baixinha) e a seu auxiliar de serviços Marcelinho. Ah! e para lembrá-los de que eu e Mesquinho, já confirmamos nossa presença no VII Congresso Intercontinental da Seresta, que será realizado no próximo mês, no Cantinho da Seresta (e vejam bem, com direito a visita à Casa do Poeta, e mais com leitura de textos do Próprio Poeta).

Então é isso. Um bejão a todos, e mais uma vez felicidades a todos os seresteiros e amantes da seresta de uma forma geral, como eu, Regio Tartufo e meu colega, Salpicão Mesquinho.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Sinopse de "Confissões de um guerreiro maia"

Na nova série de Hunab Ku, Pata de Jaguar (interpretado pelo veterano Pacal Balam, cuja parceria com o diretor se consolidou ao longo das séries “Sacrifício Divino” e “Pirâmides e Serpentes”, esta última premiada com dois Quetzalcoatls de Ouro) é um guerreiro que acaba de voltar para seu vilarejo natal após dois anos no cerco de Tikal. Mas a vida de Pata de Jaguar está longe de ser perfeita – ele rapidamente descobre que sua amada, Kan Boar, tem um caso com seu amigo de infância, Céu Tempestuoso.

Subitamente tomado pela ira, Para de Jaguar invoca o Deus da Guerra, Waxaklahun U-Bah-Chan, a Serpente de 18 Coelhos, e mata Céu Tempestuoso. O sacerdote da vila determina que Pata de Jaguar – seu próprio filho – deve ser exilado para pagar por seu crime, e é com muito pesar que ele é banido do convívio de seus familiares e amigos.

A partir daí, a trama gira em torno das peregrinações de Pata de Jaguar pela península de Yucatán, procurando um modo de se lavar de sua culpa e reencontrar a felicidade. Constantemente mudando sua ocupação – de jogador de pelota a escultor de máscaras de jade a comerciante com as tribos Toltecas – a jornada de Pata de Jaguar comporá “um panorama crítico e atual da sociedade maia, com suas pérolas e mazelas”, conforme alegou o diretor.

Afora estes detalhes iniciais, o enredo da série está sendo guardado a sete chaves. O diretor Hunab Ku, no entanto, já liberou detalhes promissores sobre os locais onde a série será rodada: “Conseguimos autorização para fazer algumas cenas cruciais na capela de Bonampak, e nossa equipe de produção está atualmente trabalhando em uma reprodução em estúdio de Chichen Itza, onde se desenrolarão alguns capítulos que revelarão um pouco mais do passado do protagonista”. Sobre o recorte temporal que a série abrangerá, o diretor afirmou que “a história se passa por volta de 10 Bak’tun da Contagem Longa, pouco antes da queda de Yaxchilán”.

A proposta é ambiciosa; resta aguardar para ver se “Confissões de um guerreiro maia” irá manter o patamar de qualidade que consagrou as obras anteriores de Hunab Ku.



Só para quebrar o hiato de postagens, fica aí um texto antigo que me foi inspirado por um momento de loucura aleatória.


P.S.: Todos os nomes em maia são reais; nada é produto da minha fértil imaginação.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Breve interrupção

Por motivos que não cabe explicar aqui, prometi a uma pessoa que ficaria sem utilizar o computador por uma semana.

Obviamente, isso significa um impedimento à publicação de novos textos durante esse período.

Até breve.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Novidade na área

Hoje eu gostaria de estrear um novo atrativo periódico do DCC – um conjunto de escritos que chamarei misteriosamente de “Fragmentos”.

A idéia é basicamente publicar (com uma certa freqüência) uma série de histórias (Relatos? Situações?) centradas em torno de um único personagem; ou seja, como um livro cujos capítulos fossem sendo lançados gradualmente, com a diferença de que o resultado final será algo mais fragmentário (vide título) e caótico do que um livro.

Várias coisas estão por trás dessa decisão. Uma é dar um certo ar de continuidade à parte do que é publicado aqui; os leitores já saberão mais ou menos do que se trata cada novo “capítulo” da série, e poderão ter um certo vínculo com o personagem e sua vida, etc. Outra é a possibilidade de desenvolver temas maiores, que exigem mais do que uns poucos parágrafos. Além disso, sempre que eu não souber o que escrever, posso simplesmente fazer um novo “Fragmento”.

P.S.1: Certos detalhes (idade dos personagens, local e época em que se desenrola a história, a definição de certos conceitos [“Loteria Humana”, etc.] que são mencionados como se fossem óbvios) foram deixados propositalmente obscuros. O futuro trará maiores informações.

P.S.2: Quaisquer traços autobiográficos podem não ser mera coincidência.

Fragmento I

No qual há um sonho e um início

Havia um sonho. E no sonho havia um mar infinito sobre um peixe enorme chamado Bahamut sobre um touro chamado Kujata sobre uma montanha de rubi sobre um anjo sobre sete infernos sobre a Terra sobre sete céus. Mas não, estava tudo errado, estava tudo ao contrário; e o sonho na realidade não era todas aquelas coisas, não havia uma única imagem sequer, apenas aquele sentimento de que estava tudo errado, tudo era o avesso do que devia ser. Assim, quando as paredes de ilusão que compunham a gaiola chamada sonho começaram a se dissolver e revelar o quarto escuro (mas não seria o quarto a verdadeira ilusão?), Henrique Cavalcanti experimentou um período de confusão, uma breve janela entre o sono e a vigília na qual a única coisa que parecia ter uma existência palpável era o sentimento de alheamento do sonho.

Olhou para o relógio; 6:16. Não sabia porque acordara tão cedo. Bocejando, levantou-se e sentou-se à escrivaninha; virou a página de seu caderno de anotações, que ainda estava aberto nos versos incompletos de um poema que tentara compor na noite anterior, e começou a anotar o sonho, empreitada que logo abandonou, em parte porque sabia que era bobagem tentar encapsular em palavras, em rabiscos abstratos, aquilo que sentira tão vividamente durante a noite, mas principalmente porque há tempos que não conseguia verdadeiramente escrever algo decente; desde que ela entrara em sua vida. Mas não, ainda não é hora de falar sobre Adriana; isso ficará para depois.

Vestiu-se apressadamente porque esse era um dia importante; esse era o dia no qual seriam feitas as inscrições para a Loteria Humana, e ele sentia uma mistura confusa de emoções. Era verdade que ele havia tentado escapar à Loteria, que desde o começo do ano tentara esquivar-se de pensar nela. Agora que o momento finalmente chegara, estava apreensivo, mas ao mesmo tempo sentia um certo alívio por finalmente estar passando por isso; não era mais necessário torturar-se gastando tempo com projeções mentais de futuros possíveis, porque o presente que agora vivia ocupava-se em selecionar um único daqueles futuros, e dessa vez ele seria real e não mais imaginário. Em breve – e com um pouco de sorte – tudo estaria acabado.

Antes de comparecer ao local das inscrições, no entanto, era necessário passar no consultório de seu psicanalista para a sua sessão diária, uma rotina que lhe tinha sido imposta pelo governo após ele ter sido classificado como indivíduo-problema por um EES (“Exame de Empatia e Sociabilidade”) aplicado há cerca de um ano e meio. Henrique achava um tanto quanto irônico que na sociedade atual as pessoas fossem legalmente forçadas a fazer algo que teoricamente deveria servir para seu próprio bem-estar; justamente pelo fato de nunca ter sido aberto em relação à sua vida, agora havia uma moção estatal obrigando-o a desnudar diariamente os recônditos de seu ser perante um estranho (obviamente o Dr. Wilker não era mais um estranho – Henrique até gostava de conversar com ele agora – mas nada mudava o fato de que tudo aquilo havia sido construído na base da artificialidade). Obviamente ele já havia pensado em tentar burlar essa imposição, mas havia sido dissuadido desta idéia pelas recomendações de alguns conhecidos, que haviam lhe contado em detalhes o impacto que um relatório negativo escrito por seu analista poderia ter em sua vida futura. No passado, ele amaldiçoara sua própria covardia em não querer tentar tomar uma atitude que lhe parecia a correta por medo de conseqüências drásticas; agora, no entanto, as sessões diárias haviam sido plenamente incorporadas à sua rotina, e o hábito suavizara a aspereza do inevitável, levando-o a aceitar aquilo tudo com resignação.

Ao entrar no consultório, ele pensou por um momento que o Dr. Wilker iria começar o diálogo pelo óbvio, conversando sobre a Loteria; no entanto, não era essa a forma de conduta dele. Não, ele contornaria graciosamente os assuntos sobre os quais era seu trabalho falar, e exatamente por isso é que o início das conversas com eles era sempre mais interessante; esse era o momento em que era possível sair numa tangente e sentir que não se estava simplesmente seguindo um programa de análise ditado pelo governo, que havia realmente um diálogo sendo construído.

- Tive um sonho estranho essa noite – começou Henrique, antes que o analista tivesse uma chance de começar a direcionar sutilmente a conversa na direção que lhe cabia.

O Dr. Wilker ergueu uma sobrancelha.

- Da última vez que conversamos sobre sonhos, você tentou me convencer de que eles eram... vejamos quais foram suas palavras... – disse ele, folheando uma caderneta de anotações – “...um produto aleatório de reações químicas no cérebro, totalmente vazios de significado e de nenhuma importância na análise psicológica de uma pessoa”. Por que o súbito interesse no assunto?

- Esse sonho foi... bem, diferente. Não era só um amontoado de cenas sem sentido... havia um sentimento, algo que permeava o sonho...

- E sobre o que ele era?

- Uma antiga cosmologia árabe... que estava totalmente ao contrário. Mas não era isso o importante, não eram as imagens que importavam, era o que estava por trás...

- Veja só, é exatamente sobre isso que eu venho dizendo em nossas sessões... o antigo Henrique Cavalcanti nunca tentaria ver nada por trás de um sonho.

- Bem, as pessoas mudam.

- Essa é outra coisa que você nunca teria dito três ou quatro meses atrás. Talvez nós devêssemos conversar sobre a relação entre essas mudanças e a – e por uma fração de segundo Henrique achou que o analista falaria sobre Adriana, que contra todas as probabilidades ele se desviaria de seu dever como empregado do governo e faria uma dedução (ou melhor, exteriorizaria essa dedução, porque Henrique se recusava a acreditar que o doutor não tivesse concluído que muito do que estava acontecendo em sua vida ultimamente tinha a ver com aquela mulher) imprevisivelmente acertada – Loteria.

Uma vez mais a possibilidade de uma conversa genuinamente interessante e esclarecedora fora esmagada impiedosamente pelo implacável dever civil.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

O dia em que ganhou um pé de pato.

Era dia 16 de outubro, ou seja, ante-véspera do seu aniversário.
Ansioso que estava pela chegada do mesmo, foi dormir cedo para que passasse a noite, chegasse o dia, passasse mais uma noite e chegasse O dia. Se deitou e pôs a cabeça no travesseiro. A mão embaixo deste sinalizava o número dois, de dois dias para ficar mais velho e ganhar presentes.
Adormeceu e acordou no dia seguinte com os punhos cerrados - sinal de que já era seu aniversário. Estranhou o silêncio, caminhou pela casa, todos dormiam. Ninguém se preparava um delicioso café na cama, nem corriam para buscar os presentes antes que ele acordasse. Havia de ser uma surpresa. E pelo visto uma das grandes.
Bom, se era, não sabia o que estavam tramando. No desjejum ninguém tocou no assunto, tudo aconteceu como um dia normal. Desolado foi para a escola, lá chegando a cena se repetia. Ninguém olhava para ele daquele jeito especial de quem está disposto a dar-lhe um pouco mais de atenção no seu dia. Se sentou, baixou a cabeça e apenas aguardou o início das aulas.
A primeira delas era PTG (produção textual e gramática). O professor entregou aos alunos uma ficha sobre orações subordinadas substantivas e, enquanto resolviam os exercícios, ele fazia a chamada. Ao chamar seu nome, respondeu:
- Eu.
e ele:
- Tenho uma coisa para você.
Pensou consigo mesmo, alguém finalmente se lembrara:
- Já sei. É um pé de pato?
- Não.
E estendeu-lhe uma redação corrigida.
Voltou à sua carteira a passos estreitos.
Aquele era, sem sombra de dúvida, o pior aniversário que já tivera. Se sentia tão mal que sequer conseguia ver graças nas piadas, anedotas ou mesmo fábulas que ouvia aqui ou acolá, justo ele que já tinha sido considerado o melhor contador de fábulas de seu liceu.
Assim o dia proseguiu, e ao término das aulas voltou resignado para seu humilde lar.
Deitou-se em sua cama, depois de um prato de grão-de-bico com beterraba, e dormiu um sono cheio de sonhos.
No primeiro deles estava o Xaveco da Turma da Mônica dizendo, desesperadamente: "Hum, hum, hum...."
Depois sonhava ser o número um na lista de chamada de sua classe.
E por último, sonhou com a propaganda do cartão de crédito Visa, o número 1 do mundo e o único aceito nas Olimpíadas.
Foi logo ao fim desse sonho que despertou com a mão formigando, maldita mania de dormir com ela sob a cabeça. Quando se deteve nela, antes de sacudi-la para se livrar da dormência, reparou no dedo indicador em riste, e finalmente se deu conta de que ainda estava no dia 17 de outubro, véspera do seu aniversário. Ficou exultante.
Como havia sido bobo. Com toda certeza, na noite passada, fechara a mão involuntariamente, o que causara toda a confusão. Agora sim, na manhã seguinte acordaria com seus familiares ao pé da cama, cantarolando um parabéns a você e trazendo deliciosos quitutes e presentes ainda mais especiais.
Porém aquela tarde parecia não passar, o relógio parecia estar contra ele. Pensou em já ir dormir, mas não tinha sono. Fez de tudo para se distrair: ouviu música, jogou CS, fez diversos trabalhos manuais: carpintaria, alvenaria, tinturaria, corte e costura, de tudo um pouco. E às 20 horas, quando finalmente pressentiu a chegada de João Pestana, escovou seus dentes, vestiu seu pijama e se recolheu a seus aposentos, esperando que o tal hominho chegasse carregando seu saquinho de veludo vermelho-tijolo e jogasse um pouco de sua areia do sono por sobre seus olhos.
Quando alguns minutos mais tardes chegou o João, pode finalmente dormir tranquilamente e foi acordar somente no dia seguinte da maneira que previra na tarde anterior.
O menino ficou muito feliz, quase deixando escapar uma gota d'água do mar.
Sentou-se, acendeu a luz do abajur e agarrou os presentes. Antes que pudesse abrir e conferir o que ganhara, sua mãe se antecipou:
- Meu filho, desculpe-nos mas não tivemos condições de arcar com as despesas da aquisição de um pé de pato.
- Não tem problema mãe. Com ou sem pé de pato, esse é o melhor aniversário da minha vida.
E todos se abraçaram e cantaram mais uma vez o hino à longevidade.
Enquanto isso, não muito longe dali, saía por debaixo das cobertas, não o bicho papão, e nem dois delicados pés brancos humanos, mas duas grandes, amarelas e enrugadas patas de patos...

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Idéia para um filme

Na verdade, não é exatamente um filme. Mas, devido às características audiovisuais de minha idéia, que é uma cruza da literatura pós-moderna com o advento da tecnologia cinematográfica, creio que a oitava arte seja o gênero cultural no qual ela melhor se encaixe.

Já que já citei a literatura pós-moderna, creio que cabe chamar a atenção para o livro que me inspirou esta idéia: Rayuela (“O Jogo da Amarelinha”, na tradução para o português), de Júlio Cortazar. A grande sacada do livro é que ele não precisa ser lido linearmente – você pode tanto ler na ordem convencional como em uma ordem de capítulos elaborada pelo autor ou em uma ordem aleatória inventada por você. A idéia é que o leitor participe da criação da história tanto quanto o autor.

Nos últimos dias estive a pensar (construção sintática, aliás, muito mais usada em Portugal do que no Brasil, mas isso não vem ao caso agora) como se poderia traduzir este conceito revolucionário para a mídia audiovisual. Minha idéia foi filmar várias cenas mais ou menos relacionadas e depois gravá-las em um CD, junto com uma interface programada. Ao inserir o CD em seu computador, uma cena inicial seria exibida, e depois você teria um leque de cenas dentre as quais deveria escolher para definir como continuaria o “filme”. Cada cena escolhida seria obviamente removida das próximas opções, para evitar repetição. Assim, ao assistir todas as cenas numa ordem escolhida por ele próprio, cada espectador teria uma experiência única e possivelmente diametralmente oposta daquele de outro espectador. Para exemplificar, considere as seguintes cenas: uma cena A na qual um certo casal briga, e uma cena B na qual esse casal é visto caminhando silenciosamente pela cidade e, ao chegar em um pier (localização escolhida tão somente por sua atmosfera romântica), se beijam. Um espectador que assisti-las na ordem A – B (ou A – X – B ou qualquer outra ordem, desde que A preceda B) será levado a entender que os dois se reconciliaram, enquanto que uma outra pessoa que assisti-las na ordem B – A pensará que presenciou o último encontro de um casal em conflito, antes da iminente briga e separação. Ou seja, apesar de presenciarem o mesmo conjunto de cenas, os dois viram histórias diferentes com interpretações diferentes. Adicione-se a isso um número de cenas maior do que 2 (ah, a boa e velha análise combinatória) e as possibilidades são imensas.

Desnecessário dizer que tal empreitada seria complexa e teria de ser muito bem planejada. Ainda não pensei em todos os detalhes acerca de sua realização – por exemplo, o espectador teria alguma noção do que são as cenas entre as quais tem de optar, ou sua escolha seria aleatória? – mas acredito que seria uma idéia bem interessante para se tentar no futuro.

(Um post relativamente curto para compensar as recentes verborragias)

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Redução ao absurdo II

É uma pena estragar a simplicidade nonsense da postagem anterior - e além do mais, só o absurdo pode verdadeiramente explicar o absurdo - mas o objetivo deste blog é publicar textos que tenham mais do que meia dúzia de palavras, e portanto aqui segue agora a publicação que complementa (apesar de macular) a anterior.

Tudo começou quando eu comecei a escrever um outro texto. O objetivo dessa outra obra era explicar quais são (na minha opinião) os princípios fundantes da Santa Liga; fiz isso porque percebi que não havia nenhum outro time tão criativo e ousado como o nosso, e gostaria de deixar uma mensagem para nossos colegas mais novos (os quais abandonaremos ao final do ano), demonstrando o quão absurdos são os fundamentos do futebol, e que a única coisa a ser ganha nessa competição arbitrária é a diversão autêntica, sem que seja necessário jogar do jeito "certo". Aquele texto aguarda no limbo o momento propício de ser tornado público (o que não se dará aqui neste espaço); no entanto, percebi que o raciocínio por trás dele pode ser extrapolado para a própria vida, e considerei interessante propor aqui esta reflexão.

De qualquer ângulo pelo qual se olhe, a vida de qualquer um de nós é um grande absurdo; e esse absurdo decorre justamente do fato de o Homem ser o único animal que procura algo além do vazio, da gratuidade. O ser humano distingue-se dos demais seres vivos por ser composto por uma parte psicológica em adição a sua parte biológica. No entanto, essa característica peculiar é tanto uma benção como uma maldição - da mesma forma que permite ao Homem interferir em seu ambiente mais do que qualquer outro animal, sua própria existência pressupõe um conflito constante com entre as duas parcelas.

Sim, pois, por raciocinar, o Homem não contenta-se em simplesmente satisfazer suas necessidades biológicas; os mecanismos mentais desenvolvidos por anos de seleção natural como a arma definitiva na luta pela sobrevivência podem tambem ser usados para atividades inúteis do ponto de vista evolutivo. Olhando o mundo a sua volta, o ser humano sente a vontade de explicar os fenômenos, de organizar racionalmente os elementos que observa e encontrar neles um sentido. Da mesma forma, ao atravessar o prisma da Consciência a luta pela sobrevivência torna-se uma busca pelo conforto, por um estado de equilíbrio frequentemente ameaçado pelo caos dos sentimentos humanos - o medo, a raiva, o amor, o desejo...

O universo, no entanto, é uma estrutura demasiado complexa, que foge ao entendimento do homem; além disso, a vida na Natureza é cruel e caótica, inspirando sentimentos de solidão e fraqueza contraditórios à ordenação lógica e ao conforto que o Homem busca incessantemente em sua vida. Nesse mundo inóspito e difícil de entender, a busca pelo entendimento e pelo conforto acaba se mascarando em outros desejos, cuja expressão varia de acordo com o contexto social de cada época - pode ser o desejo pelo poder, pela riqueza, pela fama...

Dessa forma, o ser humano substitui uma ânsia natural calcada em processos biológicos por desejos artificiais, criados para esconder a desolação perante a real natureza da vida, essa coisa possivelmente vazia e sem sentido. Ocorre, no entanto, que nossa sociedade atual está inteiramente estruturada em torno desses conceitos artificiais: vivemos em um mundo de aparências.

Vivemos para acumular dinheiro, um conceito totalmente abstrato; com os pedaços de papel que juntamos, agregamos bens materiais ao nosso já extenso rol de possessões. Somos preparados para isso desde a nossa infância; com sete anos já nos metem na educação formal, onde aprendemos um enorme número de coisas que não nos interessam; eventualmente gastaremos seis meses da vida estudando de dia e à tarde para provar que decoramos todas aquelas coisas inúteis, passando então a uma nova bateria de estudos. Um dia teremos de nos estapear com nossos colegas para conseguir um emprego que consiste basicamente em fazer alguma atividade inútil para que uma companhia ganhei dinheiro e o reivinsta nessa atividade inútil; lutaremos para escalar a estrutura corporativa e terminar nossos dias com mais pedaços de papel do que começamos. Vale lembrar que, enquanto estamos fazendo tudo isso, uma parcela bastante significativa da população luta para ter algo para comer naquele dia.

Agora eu pergunto: pra quê tudo isso? Sim, meus caros, é esse o grande absurdo: somos arrastados durante toda a vida sem nem saber por quê. O próprio fato de se estar vivo já é algo incrivelmente improvável e absurdo; ao invés de nos ocuparmos em fazer algo a respeito com o pouco tempo que nos é dado viver (e aqui há dois caminhos: ou se busca um sentido na vida, ou se admite que não existe nenhum e que portanto a existência é nossa para que nós a criemos, para que nós a demos um sentido), gastamos nosso tempo apenas seguindo o caminho que nos é apontado. Somos atores que entraram numa peça que já estava em andamento; no entanto, ao invés de buscar entender o enredo, ver o que o script tem de bom e ruim e tentar atuar na história para que ela tome o rumo que nós achamos mais adequado, contentamo-nos em fazer o que nos mandam, a seguir estritamente as falas que nos foram dadas sem nem pensar se é realmente isso que queremos fazer. Mas esse é um teatro vazio, meus amigos; não há platéia, e o único valor que a peça terá será aquele que você conseguir lhe imprimir.

Muitos adaptam-se às estruturas pré-estabelecidas para alcançar o conforto, a ausência de sofrimento; não percebem o absurdo que essa atitude representa, pois adaptar-se a um modelo significa abrir mão daquilo que se é por dentro. Qual o sentido de levar uma vida confortável e amena se ela significa ser apenas mais uma peça, mais um que renegou a própria essência? Se o destino de todos nós é a morte, não adianta buscar essa fuga que é o conforto, esse retardamento do inevitável; mais vale morrer na miséria, mas sem se render à ideologia do absurdo, essa morte em vida.

O cursinho é apenas o começo, meus caros; se vocês o consideram algo aceitável, talvez esteja na hora de começar a rever seus valores, antes que seja tarde demais.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

domingo, 10 de agosto de 2008

Anti-presente

Algum dia, muitos anos atrás, um economista astuto que analisava gráficos de vendas percebeu que Junho não era um mês muito rentável. Bom conhecedor que era das leis ocultas que regem o mercado - o princípio humano por debaixo da movimentação aparentemente impessoal de enormes somas de dinheiro - sabia que o melhor modo de esquentar as vendas era apelar para o aspecto potencialmente comercial de uma comemoração, confiando na moderna obrigação inconsciente de consumar as relações pessoais por meio da compra de presentes. E assim, seguindo a regra número um da sociedade de consumo ("Se não existe uma demanda para explorar, crie uma nova!"), estava criado o singelo e adorável Dia dos Pais (por que não? Já existia um "Dia das Mães", afinal de contas).

Existe algum tipo de obrigação oculta que faz com que as pessoas adiram incondicionalmente a qualquer coisa que esteja oficialmente impressa em um calendário, e assim todos logo aceitaram sem questionamentos o novo e arbitrário fato de que o terceiro Domingo (e não poderia ser em outro dia da semana, claro, porque o ano já tem feriados demais para furtar as engrenagens à máquina) do mês de Junho (ou em datas diversas igualmente arbitrárias, dependendo da necessidade comercial de cada país, dentre as quais vale destacar o segundo Domingo de Agosto, dia da celebração em território tupiniquim) é o dia em que todos devem subitamente celebrar o milagre da paternidade.

É claro que o aceitamento e incorporação de datas comemorativas é facilitado por uma importante tendência contemporânea: a de compartimentalizar o tempo, organizando a vida em torno de uma rotina artificial. Assim, cada pessoa carrega uma espécia de calendário interno, com anotações do tipo "25 de Dezembro: reunir a família e simular um clima de confraternização e amor" ou "1º de Janeiro: ficar eufórico com o fato de a Terra ter completado nova volta ao redor do Sol e acreditar que, por algum motivo, tudo mudou". Mas o Dia dos Pais é algo ainda mais artificial, por ser inteiramente uma fabricação, sem qualquer raiz em um motivo histórico de comemoração como "festival da colheita" ou "nascimento de um importante líder religioso".

Como alguém pode aceitar que exista um "Dia dos Pais"? Como alguém pode aceitar que se marque no calendário um dia para se desejar "feliz dia dos pais", comprar presentes e dizer coisas do tipo "ele merece, é o dia dele"? Ser pai é um processo, não um dia; é uma relação que se constrói a custa de muito conflito, não de um convívio pacífico e amoroso fingido numa data específica. Guardem o sentimentalismo barato para o Natal.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Os dois imortais - Parte II

Recomenda-se que a parte I seja lida primeiro.

“(...)

Quando cheguei ao casebre de pedra, mal contive minha agitação ao bater três vezes na porta. Assim que o homem abriu a porta, tive certeza de que ele era exatamente aquilo sobre o qual ouvira falar: reconheci em seu rosto a mesma expressão de irônico desdém de quem já viu demais, as mesmas feições de idade indefinível. Sabia, no entanto, que ele não me reconhecera como um igual; assim, antes que ele pudesse dizer qualquer coisa para me dispensar, adiantei-me:

‘Sou um imortal como você, embora suspeite que tenha nascido depois. Nos últimos anos tenho pensado em me matar; gostaria de saber porque você ainda não o fez.’

O outro ficou quieto; apenas indicou, com um gesto, que eu deveria entrar. Sentamo-nos em uma sala parcamente mobiliada, ele em uma poltrona e eu em uma cadeira de madeira levemente carcomida.

‘Já percebeu, então, que a imortalidade é uma maldição tanto quanto é uma bênção’, disse ele, após alguns minutos de silêncio. Limitei-me a menear a cabeça afirmativamente; ele contemplou meu rosto por alguns segundos, e continuou: ‘Quando criança, sempre tive muito medo da morte. À medida que os anos se passaram e eu não só não envelheci na mesma velocidade que meus companheiros como também sobrevivi além do tempo de vida de todos eles (bem como de seus filhos e de seus netos), senti-me como que grandemente abençoado: a mim, justo a mim, fora concedido ser livre das correntes impiedosas do tempo! Eu estava destinado a não carregar o grande peso da condição humana!’

‘Foi exatamente o que eu pensava no início’, respondi.

‘Os seres humanos são previsíveis; estão presos à eterna busca pelo conforto. Sei que o que digo não é novidade para você; é fácil imaginar qual a reação de qualquer pessoa à novidade de não precisar lidar com o sofrimento futuro’

‘Os seres humanos são previsíveis demais... o mundo é previsível demais...’

Ele limitou-se a gargalhar.

‘Você fala do ponto de vista da Eternidade... já deve ter se acostumado a esse tipo de vida. Um homem comum, vivendo seus sessenta ou setenta anos, contenta-se com o espetáculo da vida, e até pede por mais ao fim; mais alguém como nós é capaz de perceber os padrões que se repetem, as multidões que, apesar das conjunturas, continuam buscando a mesma coisa, e por isso o tédio é inevitável’

‘Mas mesmo assim você continua vivo.’

‘É possível matar um imortal? Não sei se conseguiria me suicidar mesmo que quisesse. Mas mesmo assim, há muitos anos cheguei a uma conclusão – tirar a própria vida é tão sem sentido quanto continuar vivendo. Tornar-me nulo equivale a viver uma vida nula neste mundo; e caso exista algum tipo de vida após a morte, acabarei indo para lá de qualquer jeito. Já vivi até agora – para que terminar com tudo? Quando a humanidade já tiver se esvaído desse planeta, caminharei sozinho pelos desertos silenciosos, uma solidão não de todo diferente daquela que vivo a cada dia de minha vida, ser único que sou.’

‘Você não caminhará sozinho. Eu também estarei lá.’

‘É o que veremos...’

Depois conversamos apenas sobre trivialidades; quis saber que tipo de coisa ocupava seus dias, e ele me disse que há muito tempo decidira empenhar-se em desempenhar tarefas que só ele poderia realizar, como contar a areia de uma praia. Ele desistira ao perceber que aquilo que se entendia por ‘praia’ não era eterno e estava em constante mutação com as marés; percebeu que aquela tarefa era análoga ao árduo trabalho diário de desembaralhar a confusão a que chamamos de realidade, de dar um sentido à essa vida que talvez não admita um sentido, e Deus (e por que é que invoco seu nome? Puro uso de uma expressão, ou alguma secreta esperança de que haja algo além desse cotidiano enfadonho, algo que me concedeu a imortalidade para que eu desempenhe algum papel obscuro?) sabe que eu, mais do que ninguém, tenho consciência do enorme absurdo que é a vida. O outro imortal, no entanto, passa seus dias sozinho, vivendo o Absurdo em sua expressão máxima; não sei se é louco ou santo, talvez os dois.

Ao encerrar a visita e me afastar da casa, joguei o revólver que carregava comigo em um lago profundo. Começo a achar que errei; sinto que algum dia voltarei para buscá-lo, e talvez seja lá que eu termine meus infindáveis dias.”


quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Os dois imortais - Parte I

Em uma jogada até agora inédita neste blog, que visa não só a aumentar o número de coisas que eu tenho para postar como também a me dar mais tempo para revisar o texto e também criar um certo suspense, dividirei um texto unusualmente longo em duas partes. Segue agora a primeira.

Demorou um tempo considerável para que se percebesse qual era a grande particularidade do habitante daquele casebre de pedra – uma habitação totalmente comum e até mesmo vulgar – numa estrada florida e pouco movimentada nos arredores de Lyon. Na verdade, para que se suscitasse algum interesse sobre ele foi necessário que um funcionário público percebesse, durante o enfadonho processo de digitalizar documentos antigos do Ministério da Economia, que os impostos referentes à casa estavam sendo pagos pela mesma pessoa há 107 anos – em suma, desde que o terreno (que antes era nada mais do que parte de um bosque) havia sido delimitado e registrado.


Em parte por curiosidade e em parte para averiguar alguma possível atividade suspeita ou ilegal, o funcionário resolveu investigar a situação. Em visita de inspeção ao terreno em questão, descobriu que era uma casa literalmente caindo aos pedaços – partes do teto e das paredes externas estavam totalmente arruinadas – aparentemente habitada por um único homem, um senhor de face sulcada e expressão cansada, cujos ralos cabelos grisalhos eram pontilhados por um ou outro fio negro. O homem demonstrou acentuada impaciência quanto às perguntas que lhe foram propostas e não colaborou com a investigação, recusando-se a revelar quaisquer informações sobre si próprio ou a comentar sobre se era ele o homem em cujo nome estava registrado o terreno e que pagara os impostos no último século.


Por estar realizando uma investigação informal e extra-oficial, sem um mandato, o funcionário foi obrigado a colher as informações que buscava com os moradores das proximidades. Aquela região rural trazia tanto um impedimento quanto um benefício à investigação – apesar de, sendo uma zona de povoação rarefeita, não estar sujeita à constante vigilância mútua da cidade, ela obedecia à primeira lei da vida no campo: cada fato que se podia espreitar da vida alheia ganhava muito mais importância, e era discutido e lembrado por muito mais tempo.


Conversando com as famílias da região – pequenos agricultores e donos de manufaturas caseiras, em sua maioria – foi possível descobrir algumas informações sobre o habitante da propriedade suspeita. Era um homem bastante misterioso – raramente saía de casa e parecia não manter relações com o mundo exterior. Não se sabia no que ele trabalhava, se é que trabalhava, ou o que exatamente ele fazia.


No entanto, a informação mais intrigante veio de um senhor de idade (que devia ter no mínimo noventa anos, embora não houvesse informado sua idade exata) que morara naquela região por toda a sua vida. Segundo ele, desde que se conhecia por gente o misterioso dono da misteriosa casa habitava aquele mesmo local; ele também disse que no decorrer de sua vida, quando fora de criança a adulto a homem velho, o habitante da casa não parecera envelhecer um ano sequer.


Confuso e sem obter a cooperação do objeto da investigação, o funcionário público voltou para casa sem encontrar as respostas que buscava. Apesar de duvidar da precisão das informações fornecidas pelo homem idoso – afinal, como podia o outro homem não ter envelhecido? – passou a contar o caso a título de curiosidade sempre que se encontrava reunido com um grupo de possíveis ouvintes.


A história foi de particular interesse a um historiador especializado no período medieval na Península Ibérica; investigar o passado do homem misterioso tornou-se seu hobby e, eventualmente, sua obsessão. Examinando documentos antigos, que tratavam da movimentação nas estradas da porção ocidental da França, encontrou relatos de um viajante cuja descrição batia com a impressão que ele tivera do homem misterioso ao visitá-lo, numa ocasião em que o diálogo provara-se tão infrutífero quanto havia sido com o funcionário público.


Viajando pela Europa atrás de documentos relacionados ao homem misterioso, o historiador encontrou indícios de que ele vivera em Córdoba por cinco anos, após chegar de Praga, cidade na qual vivera em 1856. Antes disso, havia morado também em Londres e Moscou, cidades nas quais vivera por, respectivamente, 103 e 221 anos; e em Istambul ele havia encontrado os registros mais antigos acerca de sua existência, datados do ano de 1066, quando a cidade ainda se chamava Constantinopla. O historiador não se impressionava com as datas; tinha certeza de que, em todos aqueles casos, o homem referido era exatamente o que ele procurava. Ao voltar para Paris, compilou todas as suas pesquisas e notas em um tratado no qual afirmava ter feito a maior descoberta dos últimos séculos – o homem que morava na pacata estrada de Lyon era um imortal, testemunha de incontáveis acontecimentos do último milênio e talvez até mesmo de toda a história da Humanidade!


O tratado do historiador foi recebido com desdém e ceticismo pela comunidade científica, e posteriormente relegado à obscuridade. Se essa história é hoje contada, é tão somente por causa dos curiosos fatos narrados em um manuscrito que foi encontrado abandonado em um quarto de hotel em Edinburgo.


O autor do manuscrito afirma ter ido procurar o homem de Lyon tão logo leu a tese do historiador; suas palavras são reproduzidas em parte a seguir.




A reprodução você encontra aqui no DCC daqui a dois dias!


segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Confissão

Bom. Esse é o início de uma tentativa de retomar a periodicidade de outrora (que, caso ninguém tenha reparado, era de uma publicação a cada dois dias, alternando entre eu e o Tchubas [mesmo que, diga-se de passagem, eu tenha coberto o turno do Arthurzinho mais do que uma vez]). Como eu sou um dos poucos que conservaram algum resquício de sanidade e portanto não estão no cursinho (para que essa obsessão de entrar direto na faculdade, pessoal?), espero ter tempo suficiente para fazer o trabalho que antes era dividido entre duas pessoas, e de quebra surpreender meus atribulados colegas, que sempre que arranjarem um tempinho em sua correria diária para fazer algo além de estudar poderão encontrar aqui algo novo.

Acaba aqui a primeira parte desse post, que, além de um pronunciamento, era também um gancho para a segunda parte - a "confissão" em si.

Apesar de ter prometido continuar com a regularidade pré-férias, não sei se estou à altura disso. O que muitos não sabem é que a interrupção das publicações nas férias - pelo menos de minha parte - não foi somente uma pausa para descanso e uma aceitação do fato de que grande parte dos nossos leitores estava viajando; foi também um período em que eu não escrevi quase nada, não só para o blog como também qualquer outroa coisa.

E agora vem um momento um pouco mais intimista e pessoal do que o que esse blog costuma ser (mas tudo bem, porque agora que o Tchubas lavou as mãos, ele é tecnicamente meu e eu faço o que eu quiser aqui). A verdade é que o meu processo de escrita nasce na solidão. Não necessariamente a solidão física (ou "isolamento"), mas o sentimento de solidão (e que pode ocorrer em um lugar movimentado, como uma sala de aula) - algo que é difícil de explicar, mas que é uma espécie da apartamento da sociedade, do caos cotidiano, que dá conforto e propicia a criatividade. E as férias não são exatamente um período de solidão, mas sim de confraternização, socialização, e o que o valha - ou seja, tem todo um clima que cria uma espécie de bloqueio mental à escrita, pelo menos em mim.

O que vem ocorrendo, no entanto, é que esse clima "férias" tem se estendido além do limite das férias em si; é uma mudança um tanto radical no meu modo de pensar, mas ultimamente eu tenho tido uma certa aversão ao sentimento de solidão (que não necessariamente significa "estar sozinho", como já foi demonstrado).

Todo esse "blá blá blá" só para dizer: talvez eu não cumpra o que eu semi-prometi no primeiro parágrafo. Mas tudo bem, porque eu já tenho algo preparado para o próximo post, então a regularidade vai durar por pelo menos uma ocasião.

Até lá, e vejamos o que o futuro nos reserva.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Retorno

E assim, mais uma vez, a Roda começa a girar. Após alguns poucos momentos de ingenuidade, de ilusão da temporária libertação da Roda, as monótonas rotações se fazem sentir outra vez. Só que dessa vez com uma diferença: o que aguarda além do fim dessa rotação é uma incógnita.

Alguns esperam pela libertação, pela tão aguardada liberdade ilimitada; outros pressentem que na verdade o próximo punhado de anos consiste em um processo que apenas levará a uma nova Roda, à qual serão amarrados ainda mais firmemente; mas acima de tudo há um temor no ar: o medo da quebra da rotina, de ser arrancado ao conforto, de ver mudar uma estrutura de vida que se manteve mais ou menos igual (com alterações na conjuntura, como diria uma certa pessoa) nos últimos dez ou mais anos.

Felizes aqueles que conseguirem aproveitar seu tempo mesmo sendo arrastados pela Roda; felizes aqueles que não sucumbirem à pressão social que nos faz acreditar que uma decisão definitiva deve ser tomada ao fim desse ano; felizes aqueles que, apesar de não terem escolha senão ser arrastados – afinal, o que é viver em sociedade senão ser arrastado, ter de aceitar coisas que foram definidas muito antes do próprio nascimento e quando muito ajudar a mudar umas poucas delas – conseguirem, enfim, ser apenas isso: felizes.

Sejam bem vindos de volta às aulas.

E quando se aproximarem do fim, lembrem-se:

As lágrimas de toda despedida são despejadas sobre uma página em branco.

(Sim, fui eu que inventei essa última frase; estou planejando virar escritor de auto-ajuda)


Doravante expresso minha intenção de não mais escrever aqui até que o Tartufo deixe clara suas intenções quanto ao futuro, seja postando algo novo seja admitindo que sucumbiu.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Pronunciamento oficial

Tenho que ser honesto comigo mesmo: as férias não são um período que me estimule a fazer algo produtivo, e o punhado de gatos pingados que checam isso aqui ocasionalmente já terão percebido isso. Por isso, venho por meio deste anunciar oficialmente a suspensão das atividades do DCC até o início das aulas (ou seja, por apenas alguns dias, mas que se dane - estou só confirmando uma verdade velada que não tinha sido dita em aberto até agora).

Devo esclarecer que essa foi uma decisão minha, já que não contatei meu colega sobre ela. Logo, ele está livre para fazer o que quiser; só não contem com alguma intervenção significativa minha nos próximos cinco dias, exatamente como já vem acontecendo.

Grato pela atenção.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

JPsoft apresenta: "Repovoando a Terra - O Jogo"

Nota: A seguinte idéia surgiu de uma conversa metafísica com os ilustríssimos cavalheiros Grande Lucas o Grande (ad infinitum), Shaka e Guide. Todos os direitos reservados.

"Repovoando a Terra" é um jogo do tipo RTS (sigla em inglês para "estratégia em tempo real") - estilo presente, por exemplo, em campeões de vendas do naipe de Warcraft e Age of Empires. Ou seja, você é uma espécie de Deus que observa o mundo do jogo por uma perspectiva aérea e controla seu "império". Porém, a premissa de "Repovoando a Terra" (doravante abreviado para RaT) é bastante diferente da dos jogos de estratégia comuns.

Você inicia cada partida selecionando um "Cenário Catastrófico", que definirá a ambientação do jogo. RaT dispõe de uma variada gama de "Cenários Catastróficos" para tornar cada sessão uma aventura única e eletrizante - exemplos incluem "Naufrágio em uma ilha deserta", "Sobreviventes de uma catástrofe nuclear" e "Perdidos no espaço".

A idéia básica do jogo é bastante simples: o grupo de pessoas controlado por você é o único reduto humano em um raio de milhares (talvez milhões) de quilômetros. Cabe a eles (ou seja, você) reconstruir a civilização do zero.

O jogo propriamente dito começa com uma tela de seleção onde você pode montar seu grupo de sobreviventes. RaT possui milhares de profissões (que vão de "físico nuclear" a "lavrador") para você escolher e montar sua própria estratégia - as variações são infinitas!

Ao escolher seu grupo - cujo número de integrantes é definido por você - é necessário levar em conta certas considerações estratégicas, como adaptação ao ambiente de jogo, balanceamento das profissões e necessidades vitais (um grupo muito grande pode ultrapassar as capacidades alimentícias do meio, por exemplo, e nos primeiros dias ainda não haverá plantações).

Quando o jogo começar, você estará livre para moldar sua micro-sociedade como bem entender. Obviamente, a primeira preocupação deve ser atender as necessidades básicas do grupo, estabelecendo moradias e plantações. Porém, existem muitas outras atividades opcionais. Você pode querer desenvolver tecnologicamente sua sociedade, trazendo de volta certas comodidades do "mundo civilizado"; ou então pode explorar o ambiente, fazer novas descobertas e talvez até mesmo encontrar outros sobreviventes (e como você se relacionará com eles? Será através da diplomacia, do comércio, da dominação ou do conflito? É você que escolhe!).

Lembre-se apenas de que todas as unidades sob seu comando possuem um medidor de moral. Se aquela unidade não se sentir contente com o modo como você está dirigindo o grupo ou se sentir violada quanto aos seus interesses pessoais, o medidor começa a cair; ao ultrapassar um certo ponto, aquela unidade deixará de obedecer suas ordens, talvez até passando a fomentar a discórdia. Se houver muitas unidades descontentes, elas poderão se separar e formar um grupo paralelo; por isso, lembre-se sempre de ficar atento às necessidades de seu grupo.

Corra já para a loja mais próxima e divirta-se com as possibilidades inesgotáveis de "Repovoando a Terra"!