terça-feira, 26 de agosto de 2008

Fragmento I

No qual há um sonho e um início

Havia um sonho. E no sonho havia um mar infinito sobre um peixe enorme chamado Bahamut sobre um touro chamado Kujata sobre uma montanha de rubi sobre um anjo sobre sete infernos sobre a Terra sobre sete céus. Mas não, estava tudo errado, estava tudo ao contrário; e o sonho na realidade não era todas aquelas coisas, não havia uma única imagem sequer, apenas aquele sentimento de que estava tudo errado, tudo era o avesso do que devia ser. Assim, quando as paredes de ilusão que compunham a gaiola chamada sonho começaram a se dissolver e revelar o quarto escuro (mas não seria o quarto a verdadeira ilusão?), Henrique Cavalcanti experimentou um período de confusão, uma breve janela entre o sono e a vigília na qual a única coisa que parecia ter uma existência palpável era o sentimento de alheamento do sonho.

Olhou para o relógio; 6:16. Não sabia porque acordara tão cedo. Bocejando, levantou-se e sentou-se à escrivaninha; virou a página de seu caderno de anotações, que ainda estava aberto nos versos incompletos de um poema que tentara compor na noite anterior, e começou a anotar o sonho, empreitada que logo abandonou, em parte porque sabia que era bobagem tentar encapsular em palavras, em rabiscos abstratos, aquilo que sentira tão vividamente durante a noite, mas principalmente porque há tempos que não conseguia verdadeiramente escrever algo decente; desde que ela entrara em sua vida. Mas não, ainda não é hora de falar sobre Adriana; isso ficará para depois.

Vestiu-se apressadamente porque esse era um dia importante; esse era o dia no qual seriam feitas as inscrições para a Loteria Humana, e ele sentia uma mistura confusa de emoções. Era verdade que ele havia tentado escapar à Loteria, que desde o começo do ano tentara esquivar-se de pensar nela. Agora que o momento finalmente chegara, estava apreensivo, mas ao mesmo tempo sentia um certo alívio por finalmente estar passando por isso; não era mais necessário torturar-se gastando tempo com projeções mentais de futuros possíveis, porque o presente que agora vivia ocupava-se em selecionar um único daqueles futuros, e dessa vez ele seria real e não mais imaginário. Em breve – e com um pouco de sorte – tudo estaria acabado.

Antes de comparecer ao local das inscrições, no entanto, era necessário passar no consultório de seu psicanalista para a sua sessão diária, uma rotina que lhe tinha sido imposta pelo governo após ele ter sido classificado como indivíduo-problema por um EES (“Exame de Empatia e Sociabilidade”) aplicado há cerca de um ano e meio. Henrique achava um tanto quanto irônico que na sociedade atual as pessoas fossem legalmente forçadas a fazer algo que teoricamente deveria servir para seu próprio bem-estar; justamente pelo fato de nunca ter sido aberto em relação à sua vida, agora havia uma moção estatal obrigando-o a desnudar diariamente os recônditos de seu ser perante um estranho (obviamente o Dr. Wilker não era mais um estranho – Henrique até gostava de conversar com ele agora – mas nada mudava o fato de que tudo aquilo havia sido construído na base da artificialidade). Obviamente ele já havia pensado em tentar burlar essa imposição, mas havia sido dissuadido desta idéia pelas recomendações de alguns conhecidos, que haviam lhe contado em detalhes o impacto que um relatório negativo escrito por seu analista poderia ter em sua vida futura. No passado, ele amaldiçoara sua própria covardia em não querer tentar tomar uma atitude que lhe parecia a correta por medo de conseqüências drásticas; agora, no entanto, as sessões diárias haviam sido plenamente incorporadas à sua rotina, e o hábito suavizara a aspereza do inevitável, levando-o a aceitar aquilo tudo com resignação.

Ao entrar no consultório, ele pensou por um momento que o Dr. Wilker iria começar o diálogo pelo óbvio, conversando sobre a Loteria; no entanto, não era essa a forma de conduta dele. Não, ele contornaria graciosamente os assuntos sobre os quais era seu trabalho falar, e exatamente por isso é que o início das conversas com eles era sempre mais interessante; esse era o momento em que era possível sair numa tangente e sentir que não se estava simplesmente seguindo um programa de análise ditado pelo governo, que havia realmente um diálogo sendo construído.

- Tive um sonho estranho essa noite – começou Henrique, antes que o analista tivesse uma chance de começar a direcionar sutilmente a conversa na direção que lhe cabia.

O Dr. Wilker ergueu uma sobrancelha.

- Da última vez que conversamos sobre sonhos, você tentou me convencer de que eles eram... vejamos quais foram suas palavras... – disse ele, folheando uma caderneta de anotações – “...um produto aleatório de reações químicas no cérebro, totalmente vazios de significado e de nenhuma importância na análise psicológica de uma pessoa”. Por que o súbito interesse no assunto?

- Esse sonho foi... bem, diferente. Não era só um amontoado de cenas sem sentido... havia um sentimento, algo que permeava o sonho...

- E sobre o que ele era?

- Uma antiga cosmologia árabe... que estava totalmente ao contrário. Mas não era isso o importante, não eram as imagens que importavam, era o que estava por trás...

- Veja só, é exatamente sobre isso que eu venho dizendo em nossas sessões... o antigo Henrique Cavalcanti nunca tentaria ver nada por trás de um sonho.

- Bem, as pessoas mudam.

- Essa é outra coisa que você nunca teria dito três ou quatro meses atrás. Talvez nós devêssemos conversar sobre a relação entre essas mudanças e a – e por uma fração de segundo Henrique achou que o analista falaria sobre Adriana, que contra todas as probabilidades ele se desviaria de seu dever como empregado do governo e faria uma dedução (ou melhor, exteriorizaria essa dedução, porque Henrique se recusava a acreditar que o doutor não tivesse concluído que muito do que estava acontecendo em sua vida ultimamente tinha a ver com aquela mulher) imprevisivelmente acertada – Loteria.

Uma vez mais a possibilidade de uma conversa genuinamente interessante e esclarecedora fora esmagada impiedosamente pelo implacável dever civil.

2 comentários:

Anônimo disse...

nao tenho certeza, mas acho q a grafia certa é "alheIamento" e nao "alheamento"

otimo texto, diga-se de passagem, espero ansiosamente pelo proximo...

Reggio Tartufo disse...

alhelamento? porque? alheamento não vem de alheio?