quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Os dois imortais - Parte I

Em uma jogada até agora inédita neste blog, que visa não só a aumentar o número de coisas que eu tenho para postar como também a me dar mais tempo para revisar o texto e também criar um certo suspense, dividirei um texto unusualmente longo em duas partes. Segue agora a primeira.

Demorou um tempo considerável para que se percebesse qual era a grande particularidade do habitante daquele casebre de pedra – uma habitação totalmente comum e até mesmo vulgar – numa estrada florida e pouco movimentada nos arredores de Lyon. Na verdade, para que se suscitasse algum interesse sobre ele foi necessário que um funcionário público percebesse, durante o enfadonho processo de digitalizar documentos antigos do Ministério da Economia, que os impostos referentes à casa estavam sendo pagos pela mesma pessoa há 107 anos – em suma, desde que o terreno (que antes era nada mais do que parte de um bosque) havia sido delimitado e registrado.


Em parte por curiosidade e em parte para averiguar alguma possível atividade suspeita ou ilegal, o funcionário resolveu investigar a situação. Em visita de inspeção ao terreno em questão, descobriu que era uma casa literalmente caindo aos pedaços – partes do teto e das paredes externas estavam totalmente arruinadas – aparentemente habitada por um único homem, um senhor de face sulcada e expressão cansada, cujos ralos cabelos grisalhos eram pontilhados por um ou outro fio negro. O homem demonstrou acentuada impaciência quanto às perguntas que lhe foram propostas e não colaborou com a investigação, recusando-se a revelar quaisquer informações sobre si próprio ou a comentar sobre se era ele o homem em cujo nome estava registrado o terreno e que pagara os impostos no último século.


Por estar realizando uma investigação informal e extra-oficial, sem um mandato, o funcionário foi obrigado a colher as informações que buscava com os moradores das proximidades. Aquela região rural trazia tanto um impedimento quanto um benefício à investigação – apesar de, sendo uma zona de povoação rarefeita, não estar sujeita à constante vigilância mútua da cidade, ela obedecia à primeira lei da vida no campo: cada fato que se podia espreitar da vida alheia ganhava muito mais importância, e era discutido e lembrado por muito mais tempo.


Conversando com as famílias da região – pequenos agricultores e donos de manufaturas caseiras, em sua maioria – foi possível descobrir algumas informações sobre o habitante da propriedade suspeita. Era um homem bastante misterioso – raramente saía de casa e parecia não manter relações com o mundo exterior. Não se sabia no que ele trabalhava, se é que trabalhava, ou o que exatamente ele fazia.


No entanto, a informação mais intrigante veio de um senhor de idade (que devia ter no mínimo noventa anos, embora não houvesse informado sua idade exata) que morara naquela região por toda a sua vida. Segundo ele, desde que se conhecia por gente o misterioso dono da misteriosa casa habitava aquele mesmo local; ele também disse que no decorrer de sua vida, quando fora de criança a adulto a homem velho, o habitante da casa não parecera envelhecer um ano sequer.


Confuso e sem obter a cooperação do objeto da investigação, o funcionário público voltou para casa sem encontrar as respostas que buscava. Apesar de duvidar da precisão das informações fornecidas pelo homem idoso – afinal, como podia o outro homem não ter envelhecido? – passou a contar o caso a título de curiosidade sempre que se encontrava reunido com um grupo de possíveis ouvintes.


A história foi de particular interesse a um historiador especializado no período medieval na Península Ibérica; investigar o passado do homem misterioso tornou-se seu hobby e, eventualmente, sua obsessão. Examinando documentos antigos, que tratavam da movimentação nas estradas da porção ocidental da França, encontrou relatos de um viajante cuja descrição batia com a impressão que ele tivera do homem misterioso ao visitá-lo, numa ocasião em que o diálogo provara-se tão infrutífero quanto havia sido com o funcionário público.


Viajando pela Europa atrás de documentos relacionados ao homem misterioso, o historiador encontrou indícios de que ele vivera em Córdoba por cinco anos, após chegar de Praga, cidade na qual vivera em 1856. Antes disso, havia morado também em Londres e Moscou, cidades nas quais vivera por, respectivamente, 103 e 221 anos; e em Istambul ele havia encontrado os registros mais antigos acerca de sua existência, datados do ano de 1066, quando a cidade ainda se chamava Constantinopla. O historiador não se impressionava com as datas; tinha certeza de que, em todos aqueles casos, o homem referido era exatamente o que ele procurava. Ao voltar para Paris, compilou todas as suas pesquisas e notas em um tratado no qual afirmava ter feito a maior descoberta dos últimos séculos – o homem que morava na pacata estrada de Lyon era um imortal, testemunha de incontáveis acontecimentos do último milênio e talvez até mesmo de toda a história da Humanidade!


O tratado do historiador foi recebido com desdém e ceticismo pela comunidade científica, e posteriormente relegado à obscuridade. Se essa história é hoje contada, é tão somente por causa dos curiosos fatos narrados em um manuscrito que foi encontrado abandonado em um quarto de hotel em Edinburgo.


O autor do manuscrito afirma ter ido procurar o homem de Lyon tão logo leu a tese do historiador; suas palavras são reproduzidas em parte a seguir.




A reprodução você encontra aqui no DCC daqui a dois dias!


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