quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Redução ao absurdo II

É uma pena estragar a simplicidade nonsense da postagem anterior - e além do mais, só o absurdo pode verdadeiramente explicar o absurdo - mas o objetivo deste blog é publicar textos que tenham mais do que meia dúzia de palavras, e portanto aqui segue agora a publicação que complementa (apesar de macular) a anterior.

Tudo começou quando eu comecei a escrever um outro texto. O objetivo dessa outra obra era explicar quais são (na minha opinião) os princípios fundantes da Santa Liga; fiz isso porque percebi que não havia nenhum outro time tão criativo e ousado como o nosso, e gostaria de deixar uma mensagem para nossos colegas mais novos (os quais abandonaremos ao final do ano), demonstrando o quão absurdos são os fundamentos do futebol, e que a única coisa a ser ganha nessa competição arbitrária é a diversão autêntica, sem que seja necessário jogar do jeito "certo". Aquele texto aguarda no limbo o momento propício de ser tornado público (o que não se dará aqui neste espaço); no entanto, percebi que o raciocínio por trás dele pode ser extrapolado para a própria vida, e considerei interessante propor aqui esta reflexão.

De qualquer ângulo pelo qual se olhe, a vida de qualquer um de nós é um grande absurdo; e esse absurdo decorre justamente do fato de o Homem ser o único animal que procura algo além do vazio, da gratuidade. O ser humano distingue-se dos demais seres vivos por ser composto por uma parte psicológica em adição a sua parte biológica. No entanto, essa característica peculiar é tanto uma benção como uma maldição - da mesma forma que permite ao Homem interferir em seu ambiente mais do que qualquer outro animal, sua própria existência pressupõe um conflito constante com entre as duas parcelas.

Sim, pois, por raciocinar, o Homem não contenta-se em simplesmente satisfazer suas necessidades biológicas; os mecanismos mentais desenvolvidos por anos de seleção natural como a arma definitiva na luta pela sobrevivência podem tambem ser usados para atividades inúteis do ponto de vista evolutivo. Olhando o mundo a sua volta, o ser humano sente a vontade de explicar os fenômenos, de organizar racionalmente os elementos que observa e encontrar neles um sentido. Da mesma forma, ao atravessar o prisma da Consciência a luta pela sobrevivência torna-se uma busca pelo conforto, por um estado de equilíbrio frequentemente ameaçado pelo caos dos sentimentos humanos - o medo, a raiva, o amor, o desejo...

O universo, no entanto, é uma estrutura demasiado complexa, que foge ao entendimento do homem; além disso, a vida na Natureza é cruel e caótica, inspirando sentimentos de solidão e fraqueza contraditórios à ordenação lógica e ao conforto que o Homem busca incessantemente em sua vida. Nesse mundo inóspito e difícil de entender, a busca pelo entendimento e pelo conforto acaba se mascarando em outros desejos, cuja expressão varia de acordo com o contexto social de cada época - pode ser o desejo pelo poder, pela riqueza, pela fama...

Dessa forma, o ser humano substitui uma ânsia natural calcada em processos biológicos por desejos artificiais, criados para esconder a desolação perante a real natureza da vida, essa coisa possivelmente vazia e sem sentido. Ocorre, no entanto, que nossa sociedade atual está inteiramente estruturada em torno desses conceitos artificiais: vivemos em um mundo de aparências.

Vivemos para acumular dinheiro, um conceito totalmente abstrato; com os pedaços de papel que juntamos, agregamos bens materiais ao nosso já extenso rol de possessões. Somos preparados para isso desde a nossa infância; com sete anos já nos metem na educação formal, onde aprendemos um enorme número de coisas que não nos interessam; eventualmente gastaremos seis meses da vida estudando de dia e à tarde para provar que decoramos todas aquelas coisas inúteis, passando então a uma nova bateria de estudos. Um dia teremos de nos estapear com nossos colegas para conseguir um emprego que consiste basicamente em fazer alguma atividade inútil para que uma companhia ganhei dinheiro e o reivinsta nessa atividade inútil; lutaremos para escalar a estrutura corporativa e terminar nossos dias com mais pedaços de papel do que começamos. Vale lembrar que, enquanto estamos fazendo tudo isso, uma parcela bastante significativa da população luta para ter algo para comer naquele dia.

Agora eu pergunto: pra quê tudo isso? Sim, meus caros, é esse o grande absurdo: somos arrastados durante toda a vida sem nem saber por quê. O próprio fato de se estar vivo já é algo incrivelmente improvável e absurdo; ao invés de nos ocuparmos em fazer algo a respeito com o pouco tempo que nos é dado viver (e aqui há dois caminhos: ou se busca um sentido na vida, ou se admite que não existe nenhum e que portanto a existência é nossa para que nós a criemos, para que nós a demos um sentido), gastamos nosso tempo apenas seguindo o caminho que nos é apontado. Somos atores que entraram numa peça que já estava em andamento; no entanto, ao invés de buscar entender o enredo, ver o que o script tem de bom e ruim e tentar atuar na história para que ela tome o rumo que nós achamos mais adequado, contentamo-nos em fazer o que nos mandam, a seguir estritamente as falas que nos foram dadas sem nem pensar se é realmente isso que queremos fazer. Mas esse é um teatro vazio, meus amigos; não há platéia, e o único valor que a peça terá será aquele que você conseguir lhe imprimir.

Muitos adaptam-se às estruturas pré-estabelecidas para alcançar o conforto, a ausência de sofrimento; não percebem o absurdo que essa atitude representa, pois adaptar-se a um modelo significa abrir mão daquilo que se é por dentro. Qual o sentido de levar uma vida confortável e amena se ela significa ser apenas mais uma peça, mais um que renegou a própria essência? Se o destino de todos nós é a morte, não adianta buscar essa fuga que é o conforto, esse retardamento do inevitável; mais vale morrer na miséria, mas sem se render à ideologia do absurdo, essa morte em vida.

O cursinho é apenas o começo, meus caros; se vocês o consideram algo aceitável, talvez esteja na hora de começar a rever seus valores, antes que seja tarde demais.

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