sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Os dois imortais - Parte II

Recomenda-se que a parte I seja lida primeiro.

“(...)

Quando cheguei ao casebre de pedra, mal contive minha agitação ao bater três vezes na porta. Assim que o homem abriu a porta, tive certeza de que ele era exatamente aquilo sobre o qual ouvira falar: reconheci em seu rosto a mesma expressão de irônico desdém de quem já viu demais, as mesmas feições de idade indefinível. Sabia, no entanto, que ele não me reconhecera como um igual; assim, antes que ele pudesse dizer qualquer coisa para me dispensar, adiantei-me:

‘Sou um imortal como você, embora suspeite que tenha nascido depois. Nos últimos anos tenho pensado em me matar; gostaria de saber porque você ainda não o fez.’

O outro ficou quieto; apenas indicou, com um gesto, que eu deveria entrar. Sentamo-nos em uma sala parcamente mobiliada, ele em uma poltrona e eu em uma cadeira de madeira levemente carcomida.

‘Já percebeu, então, que a imortalidade é uma maldição tanto quanto é uma bênção’, disse ele, após alguns minutos de silêncio. Limitei-me a menear a cabeça afirmativamente; ele contemplou meu rosto por alguns segundos, e continuou: ‘Quando criança, sempre tive muito medo da morte. À medida que os anos se passaram e eu não só não envelheci na mesma velocidade que meus companheiros como também sobrevivi além do tempo de vida de todos eles (bem como de seus filhos e de seus netos), senti-me como que grandemente abençoado: a mim, justo a mim, fora concedido ser livre das correntes impiedosas do tempo! Eu estava destinado a não carregar o grande peso da condição humana!’

‘Foi exatamente o que eu pensava no início’, respondi.

‘Os seres humanos são previsíveis; estão presos à eterna busca pelo conforto. Sei que o que digo não é novidade para você; é fácil imaginar qual a reação de qualquer pessoa à novidade de não precisar lidar com o sofrimento futuro’

‘Os seres humanos são previsíveis demais... o mundo é previsível demais...’

Ele limitou-se a gargalhar.

‘Você fala do ponto de vista da Eternidade... já deve ter se acostumado a esse tipo de vida. Um homem comum, vivendo seus sessenta ou setenta anos, contenta-se com o espetáculo da vida, e até pede por mais ao fim; mais alguém como nós é capaz de perceber os padrões que se repetem, as multidões que, apesar das conjunturas, continuam buscando a mesma coisa, e por isso o tédio é inevitável’

‘Mas mesmo assim você continua vivo.’

‘É possível matar um imortal? Não sei se conseguiria me suicidar mesmo que quisesse. Mas mesmo assim, há muitos anos cheguei a uma conclusão – tirar a própria vida é tão sem sentido quanto continuar vivendo. Tornar-me nulo equivale a viver uma vida nula neste mundo; e caso exista algum tipo de vida após a morte, acabarei indo para lá de qualquer jeito. Já vivi até agora – para que terminar com tudo? Quando a humanidade já tiver se esvaído desse planeta, caminharei sozinho pelos desertos silenciosos, uma solidão não de todo diferente daquela que vivo a cada dia de minha vida, ser único que sou.’

‘Você não caminhará sozinho. Eu também estarei lá.’

‘É o que veremos...’

Depois conversamos apenas sobre trivialidades; quis saber que tipo de coisa ocupava seus dias, e ele me disse que há muito tempo decidira empenhar-se em desempenhar tarefas que só ele poderia realizar, como contar a areia de uma praia. Ele desistira ao perceber que aquilo que se entendia por ‘praia’ não era eterno e estava em constante mutação com as marés; percebeu que aquela tarefa era análoga ao árduo trabalho diário de desembaralhar a confusão a que chamamos de realidade, de dar um sentido à essa vida que talvez não admita um sentido, e Deus (e por que é que invoco seu nome? Puro uso de uma expressão, ou alguma secreta esperança de que haja algo além desse cotidiano enfadonho, algo que me concedeu a imortalidade para que eu desempenhe algum papel obscuro?) sabe que eu, mais do que ninguém, tenho consciência do enorme absurdo que é a vida. O outro imortal, no entanto, passa seus dias sozinho, vivendo o Absurdo em sua expressão máxima; não sei se é louco ou santo, talvez os dois.

Ao encerrar a visita e me afastar da casa, joguei o revólver que carregava comigo em um lago profundo. Começo a achar que errei; sinto que algum dia voltarei para buscá-lo, e talvez seja lá que eu termine meus infindáveis dias.”


4 comentários:

Anônimo disse...

Acabou?
Tava indo mó bem.

Ótimo texto, delicioso, suculento.

Continue assim João, esse menino maravilhoso, criativo, amigo, simpático e generoso.

Um grande beijo,

da Tia Yupa

Salpicão Mesquinho disse...

Acabou. Aquele niilista parágrafo final não é indicador suficiente?

Aliás, quem é a senhora, tia yupa?

Anônimo disse...

Meu caro sobrinho,

O que é niilista mesmo?

E minha idenitdade é um segredo meu filho, quer dizer sobrinho, ou será sobrinho-neto? Um segredo que carrego comigo há muitos anos e muitos anos, quase tantos anos quanto quantos anos tem o senhor dos muitos anos (gostou do trava línguas? é quase um: o tempo perguntou pro tempo quanto tempo o tempo tem... ou o doce perguntou pro doce qual é doce mais doce...sei lá o q...). Portanto [que é =/ (= diferente) de por tanto (tanto anos)], não poderei responder sua pergunta e satisfazer sua curiosidade, solucionando tal mistério.

Me despeço aqui, com toda essa prolixidade,

outro beijo,

Tia Yupa

Reggio Tartufo disse...

Muito bom seu texto João mais uma vez.

Procurarei encontrar sempre um tempinho para me deliciar nessas estupendas narrativas.

E não, não sou yupinha.

Flw.