sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Breve interrupção

Por motivos que não cabe explicar aqui, prometi a uma pessoa que ficaria sem utilizar o computador por uma semana.

Obviamente, isso significa um impedimento à publicação de novos textos durante esse período.

Até breve.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Novidade na área

Hoje eu gostaria de estrear um novo atrativo periódico do DCC – um conjunto de escritos que chamarei misteriosamente de “Fragmentos”.

A idéia é basicamente publicar (com uma certa freqüência) uma série de histórias (Relatos? Situações?) centradas em torno de um único personagem; ou seja, como um livro cujos capítulos fossem sendo lançados gradualmente, com a diferença de que o resultado final será algo mais fragmentário (vide título) e caótico do que um livro.

Várias coisas estão por trás dessa decisão. Uma é dar um certo ar de continuidade à parte do que é publicado aqui; os leitores já saberão mais ou menos do que se trata cada novo “capítulo” da série, e poderão ter um certo vínculo com o personagem e sua vida, etc. Outra é a possibilidade de desenvolver temas maiores, que exigem mais do que uns poucos parágrafos. Além disso, sempre que eu não souber o que escrever, posso simplesmente fazer um novo “Fragmento”.

P.S.1: Certos detalhes (idade dos personagens, local e época em que se desenrola a história, a definição de certos conceitos [“Loteria Humana”, etc.] que são mencionados como se fossem óbvios) foram deixados propositalmente obscuros. O futuro trará maiores informações.

P.S.2: Quaisquer traços autobiográficos podem não ser mera coincidência.

Fragmento I

No qual há um sonho e um início

Havia um sonho. E no sonho havia um mar infinito sobre um peixe enorme chamado Bahamut sobre um touro chamado Kujata sobre uma montanha de rubi sobre um anjo sobre sete infernos sobre a Terra sobre sete céus. Mas não, estava tudo errado, estava tudo ao contrário; e o sonho na realidade não era todas aquelas coisas, não havia uma única imagem sequer, apenas aquele sentimento de que estava tudo errado, tudo era o avesso do que devia ser. Assim, quando as paredes de ilusão que compunham a gaiola chamada sonho começaram a se dissolver e revelar o quarto escuro (mas não seria o quarto a verdadeira ilusão?), Henrique Cavalcanti experimentou um período de confusão, uma breve janela entre o sono e a vigília na qual a única coisa que parecia ter uma existência palpável era o sentimento de alheamento do sonho.

Olhou para o relógio; 6:16. Não sabia porque acordara tão cedo. Bocejando, levantou-se e sentou-se à escrivaninha; virou a página de seu caderno de anotações, que ainda estava aberto nos versos incompletos de um poema que tentara compor na noite anterior, e começou a anotar o sonho, empreitada que logo abandonou, em parte porque sabia que era bobagem tentar encapsular em palavras, em rabiscos abstratos, aquilo que sentira tão vividamente durante a noite, mas principalmente porque há tempos que não conseguia verdadeiramente escrever algo decente; desde que ela entrara em sua vida. Mas não, ainda não é hora de falar sobre Adriana; isso ficará para depois.

Vestiu-se apressadamente porque esse era um dia importante; esse era o dia no qual seriam feitas as inscrições para a Loteria Humana, e ele sentia uma mistura confusa de emoções. Era verdade que ele havia tentado escapar à Loteria, que desde o começo do ano tentara esquivar-se de pensar nela. Agora que o momento finalmente chegara, estava apreensivo, mas ao mesmo tempo sentia um certo alívio por finalmente estar passando por isso; não era mais necessário torturar-se gastando tempo com projeções mentais de futuros possíveis, porque o presente que agora vivia ocupava-se em selecionar um único daqueles futuros, e dessa vez ele seria real e não mais imaginário. Em breve – e com um pouco de sorte – tudo estaria acabado.

Antes de comparecer ao local das inscrições, no entanto, era necessário passar no consultório de seu psicanalista para a sua sessão diária, uma rotina que lhe tinha sido imposta pelo governo após ele ter sido classificado como indivíduo-problema por um EES (“Exame de Empatia e Sociabilidade”) aplicado há cerca de um ano e meio. Henrique achava um tanto quanto irônico que na sociedade atual as pessoas fossem legalmente forçadas a fazer algo que teoricamente deveria servir para seu próprio bem-estar; justamente pelo fato de nunca ter sido aberto em relação à sua vida, agora havia uma moção estatal obrigando-o a desnudar diariamente os recônditos de seu ser perante um estranho (obviamente o Dr. Wilker não era mais um estranho – Henrique até gostava de conversar com ele agora – mas nada mudava o fato de que tudo aquilo havia sido construído na base da artificialidade). Obviamente ele já havia pensado em tentar burlar essa imposição, mas havia sido dissuadido desta idéia pelas recomendações de alguns conhecidos, que haviam lhe contado em detalhes o impacto que um relatório negativo escrito por seu analista poderia ter em sua vida futura. No passado, ele amaldiçoara sua própria covardia em não querer tentar tomar uma atitude que lhe parecia a correta por medo de conseqüências drásticas; agora, no entanto, as sessões diárias haviam sido plenamente incorporadas à sua rotina, e o hábito suavizara a aspereza do inevitável, levando-o a aceitar aquilo tudo com resignação.

Ao entrar no consultório, ele pensou por um momento que o Dr. Wilker iria começar o diálogo pelo óbvio, conversando sobre a Loteria; no entanto, não era essa a forma de conduta dele. Não, ele contornaria graciosamente os assuntos sobre os quais era seu trabalho falar, e exatamente por isso é que o início das conversas com eles era sempre mais interessante; esse era o momento em que era possível sair numa tangente e sentir que não se estava simplesmente seguindo um programa de análise ditado pelo governo, que havia realmente um diálogo sendo construído.

- Tive um sonho estranho essa noite – começou Henrique, antes que o analista tivesse uma chance de começar a direcionar sutilmente a conversa na direção que lhe cabia.

O Dr. Wilker ergueu uma sobrancelha.

- Da última vez que conversamos sobre sonhos, você tentou me convencer de que eles eram... vejamos quais foram suas palavras... – disse ele, folheando uma caderneta de anotações – “...um produto aleatório de reações químicas no cérebro, totalmente vazios de significado e de nenhuma importância na análise psicológica de uma pessoa”. Por que o súbito interesse no assunto?

- Esse sonho foi... bem, diferente. Não era só um amontoado de cenas sem sentido... havia um sentimento, algo que permeava o sonho...

- E sobre o que ele era?

- Uma antiga cosmologia árabe... que estava totalmente ao contrário. Mas não era isso o importante, não eram as imagens que importavam, era o que estava por trás...

- Veja só, é exatamente sobre isso que eu venho dizendo em nossas sessões... o antigo Henrique Cavalcanti nunca tentaria ver nada por trás de um sonho.

- Bem, as pessoas mudam.

- Essa é outra coisa que você nunca teria dito três ou quatro meses atrás. Talvez nós devêssemos conversar sobre a relação entre essas mudanças e a – e por uma fração de segundo Henrique achou que o analista falaria sobre Adriana, que contra todas as probabilidades ele se desviaria de seu dever como empregado do governo e faria uma dedução (ou melhor, exteriorizaria essa dedução, porque Henrique se recusava a acreditar que o doutor não tivesse concluído que muito do que estava acontecendo em sua vida ultimamente tinha a ver com aquela mulher) imprevisivelmente acertada – Loteria.

Uma vez mais a possibilidade de uma conversa genuinamente interessante e esclarecedora fora esmagada impiedosamente pelo implacável dever civil.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

O dia em que ganhou um pé de pato.

Era dia 16 de outubro, ou seja, ante-véspera do seu aniversário.
Ansioso que estava pela chegada do mesmo, foi dormir cedo para que passasse a noite, chegasse o dia, passasse mais uma noite e chegasse O dia. Se deitou e pôs a cabeça no travesseiro. A mão embaixo deste sinalizava o número dois, de dois dias para ficar mais velho e ganhar presentes.
Adormeceu e acordou no dia seguinte com os punhos cerrados - sinal de que já era seu aniversário. Estranhou o silêncio, caminhou pela casa, todos dormiam. Ninguém se preparava um delicioso café na cama, nem corriam para buscar os presentes antes que ele acordasse. Havia de ser uma surpresa. E pelo visto uma das grandes.
Bom, se era, não sabia o que estavam tramando. No desjejum ninguém tocou no assunto, tudo aconteceu como um dia normal. Desolado foi para a escola, lá chegando a cena se repetia. Ninguém olhava para ele daquele jeito especial de quem está disposto a dar-lhe um pouco mais de atenção no seu dia. Se sentou, baixou a cabeça e apenas aguardou o início das aulas.
A primeira delas era PTG (produção textual e gramática). O professor entregou aos alunos uma ficha sobre orações subordinadas substantivas e, enquanto resolviam os exercícios, ele fazia a chamada. Ao chamar seu nome, respondeu:
- Eu.
e ele:
- Tenho uma coisa para você.
Pensou consigo mesmo, alguém finalmente se lembrara:
- Já sei. É um pé de pato?
- Não.
E estendeu-lhe uma redação corrigida.
Voltou à sua carteira a passos estreitos.
Aquele era, sem sombra de dúvida, o pior aniversário que já tivera. Se sentia tão mal que sequer conseguia ver graças nas piadas, anedotas ou mesmo fábulas que ouvia aqui ou acolá, justo ele que já tinha sido considerado o melhor contador de fábulas de seu liceu.
Assim o dia proseguiu, e ao término das aulas voltou resignado para seu humilde lar.
Deitou-se em sua cama, depois de um prato de grão-de-bico com beterraba, e dormiu um sono cheio de sonhos.
No primeiro deles estava o Xaveco da Turma da Mônica dizendo, desesperadamente: "Hum, hum, hum...."
Depois sonhava ser o número um na lista de chamada de sua classe.
E por último, sonhou com a propaganda do cartão de crédito Visa, o número 1 do mundo e o único aceito nas Olimpíadas.
Foi logo ao fim desse sonho que despertou com a mão formigando, maldita mania de dormir com ela sob a cabeça. Quando se deteve nela, antes de sacudi-la para se livrar da dormência, reparou no dedo indicador em riste, e finalmente se deu conta de que ainda estava no dia 17 de outubro, véspera do seu aniversário. Ficou exultante.
Como havia sido bobo. Com toda certeza, na noite passada, fechara a mão involuntariamente, o que causara toda a confusão. Agora sim, na manhã seguinte acordaria com seus familiares ao pé da cama, cantarolando um parabéns a você e trazendo deliciosos quitutes e presentes ainda mais especiais.
Porém aquela tarde parecia não passar, o relógio parecia estar contra ele. Pensou em já ir dormir, mas não tinha sono. Fez de tudo para se distrair: ouviu música, jogou CS, fez diversos trabalhos manuais: carpintaria, alvenaria, tinturaria, corte e costura, de tudo um pouco. E às 20 horas, quando finalmente pressentiu a chegada de João Pestana, escovou seus dentes, vestiu seu pijama e se recolheu a seus aposentos, esperando que o tal hominho chegasse carregando seu saquinho de veludo vermelho-tijolo e jogasse um pouco de sua areia do sono por sobre seus olhos.
Quando alguns minutos mais tardes chegou o João, pode finalmente dormir tranquilamente e foi acordar somente no dia seguinte da maneira que previra na tarde anterior.
O menino ficou muito feliz, quase deixando escapar uma gota d'água do mar.
Sentou-se, acendeu a luz do abajur e agarrou os presentes. Antes que pudesse abrir e conferir o que ganhara, sua mãe se antecipou:
- Meu filho, desculpe-nos mas não tivemos condições de arcar com as despesas da aquisição de um pé de pato.
- Não tem problema mãe. Com ou sem pé de pato, esse é o melhor aniversário da minha vida.
E todos se abraçaram e cantaram mais uma vez o hino à longevidade.
Enquanto isso, não muito longe dali, saía por debaixo das cobertas, não o bicho papão, e nem dois delicados pés brancos humanos, mas duas grandes, amarelas e enrugadas patas de patos...

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Idéia para um filme

Na verdade, não é exatamente um filme. Mas, devido às características audiovisuais de minha idéia, que é uma cruza da literatura pós-moderna com o advento da tecnologia cinematográfica, creio que a oitava arte seja o gênero cultural no qual ela melhor se encaixe.

Já que já citei a literatura pós-moderna, creio que cabe chamar a atenção para o livro que me inspirou esta idéia: Rayuela (“O Jogo da Amarelinha”, na tradução para o português), de Júlio Cortazar. A grande sacada do livro é que ele não precisa ser lido linearmente – você pode tanto ler na ordem convencional como em uma ordem de capítulos elaborada pelo autor ou em uma ordem aleatória inventada por você. A idéia é que o leitor participe da criação da história tanto quanto o autor.

Nos últimos dias estive a pensar (construção sintática, aliás, muito mais usada em Portugal do que no Brasil, mas isso não vem ao caso agora) como se poderia traduzir este conceito revolucionário para a mídia audiovisual. Minha idéia foi filmar várias cenas mais ou menos relacionadas e depois gravá-las em um CD, junto com uma interface programada. Ao inserir o CD em seu computador, uma cena inicial seria exibida, e depois você teria um leque de cenas dentre as quais deveria escolher para definir como continuaria o “filme”. Cada cena escolhida seria obviamente removida das próximas opções, para evitar repetição. Assim, ao assistir todas as cenas numa ordem escolhida por ele próprio, cada espectador teria uma experiência única e possivelmente diametralmente oposta daquele de outro espectador. Para exemplificar, considere as seguintes cenas: uma cena A na qual um certo casal briga, e uma cena B na qual esse casal é visto caminhando silenciosamente pela cidade e, ao chegar em um pier (localização escolhida tão somente por sua atmosfera romântica), se beijam. Um espectador que assisti-las na ordem A – B (ou A – X – B ou qualquer outra ordem, desde que A preceda B) será levado a entender que os dois se reconciliaram, enquanto que uma outra pessoa que assisti-las na ordem B – A pensará que presenciou o último encontro de um casal em conflito, antes da iminente briga e separação. Ou seja, apesar de presenciarem o mesmo conjunto de cenas, os dois viram histórias diferentes com interpretações diferentes. Adicione-se a isso um número de cenas maior do que 2 (ah, a boa e velha análise combinatória) e as possibilidades são imensas.

Desnecessário dizer que tal empreitada seria complexa e teria de ser muito bem planejada. Ainda não pensei em todos os detalhes acerca de sua realização – por exemplo, o espectador teria alguma noção do que são as cenas entre as quais tem de optar, ou sua escolha seria aleatória? – mas acredito que seria uma idéia bem interessante para se tentar no futuro.

(Um post relativamente curto para compensar as recentes verborragias)

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Redução ao absurdo II

É uma pena estragar a simplicidade nonsense da postagem anterior - e além do mais, só o absurdo pode verdadeiramente explicar o absurdo - mas o objetivo deste blog é publicar textos que tenham mais do que meia dúzia de palavras, e portanto aqui segue agora a publicação que complementa (apesar de macular) a anterior.

Tudo começou quando eu comecei a escrever um outro texto. O objetivo dessa outra obra era explicar quais são (na minha opinião) os princípios fundantes da Santa Liga; fiz isso porque percebi que não havia nenhum outro time tão criativo e ousado como o nosso, e gostaria de deixar uma mensagem para nossos colegas mais novos (os quais abandonaremos ao final do ano), demonstrando o quão absurdos são os fundamentos do futebol, e que a única coisa a ser ganha nessa competição arbitrária é a diversão autêntica, sem que seja necessário jogar do jeito "certo". Aquele texto aguarda no limbo o momento propício de ser tornado público (o que não se dará aqui neste espaço); no entanto, percebi que o raciocínio por trás dele pode ser extrapolado para a própria vida, e considerei interessante propor aqui esta reflexão.

De qualquer ângulo pelo qual se olhe, a vida de qualquer um de nós é um grande absurdo; e esse absurdo decorre justamente do fato de o Homem ser o único animal que procura algo além do vazio, da gratuidade. O ser humano distingue-se dos demais seres vivos por ser composto por uma parte psicológica em adição a sua parte biológica. No entanto, essa característica peculiar é tanto uma benção como uma maldição - da mesma forma que permite ao Homem interferir em seu ambiente mais do que qualquer outro animal, sua própria existência pressupõe um conflito constante com entre as duas parcelas.

Sim, pois, por raciocinar, o Homem não contenta-se em simplesmente satisfazer suas necessidades biológicas; os mecanismos mentais desenvolvidos por anos de seleção natural como a arma definitiva na luta pela sobrevivência podem tambem ser usados para atividades inúteis do ponto de vista evolutivo. Olhando o mundo a sua volta, o ser humano sente a vontade de explicar os fenômenos, de organizar racionalmente os elementos que observa e encontrar neles um sentido. Da mesma forma, ao atravessar o prisma da Consciência a luta pela sobrevivência torna-se uma busca pelo conforto, por um estado de equilíbrio frequentemente ameaçado pelo caos dos sentimentos humanos - o medo, a raiva, o amor, o desejo...

O universo, no entanto, é uma estrutura demasiado complexa, que foge ao entendimento do homem; além disso, a vida na Natureza é cruel e caótica, inspirando sentimentos de solidão e fraqueza contraditórios à ordenação lógica e ao conforto que o Homem busca incessantemente em sua vida. Nesse mundo inóspito e difícil de entender, a busca pelo entendimento e pelo conforto acaba se mascarando em outros desejos, cuja expressão varia de acordo com o contexto social de cada época - pode ser o desejo pelo poder, pela riqueza, pela fama...

Dessa forma, o ser humano substitui uma ânsia natural calcada em processos biológicos por desejos artificiais, criados para esconder a desolação perante a real natureza da vida, essa coisa possivelmente vazia e sem sentido. Ocorre, no entanto, que nossa sociedade atual está inteiramente estruturada em torno desses conceitos artificiais: vivemos em um mundo de aparências.

Vivemos para acumular dinheiro, um conceito totalmente abstrato; com os pedaços de papel que juntamos, agregamos bens materiais ao nosso já extenso rol de possessões. Somos preparados para isso desde a nossa infância; com sete anos já nos metem na educação formal, onde aprendemos um enorme número de coisas que não nos interessam; eventualmente gastaremos seis meses da vida estudando de dia e à tarde para provar que decoramos todas aquelas coisas inúteis, passando então a uma nova bateria de estudos. Um dia teremos de nos estapear com nossos colegas para conseguir um emprego que consiste basicamente em fazer alguma atividade inútil para que uma companhia ganhei dinheiro e o reivinsta nessa atividade inútil; lutaremos para escalar a estrutura corporativa e terminar nossos dias com mais pedaços de papel do que começamos. Vale lembrar que, enquanto estamos fazendo tudo isso, uma parcela bastante significativa da população luta para ter algo para comer naquele dia.

Agora eu pergunto: pra quê tudo isso? Sim, meus caros, é esse o grande absurdo: somos arrastados durante toda a vida sem nem saber por quê. O próprio fato de se estar vivo já é algo incrivelmente improvável e absurdo; ao invés de nos ocuparmos em fazer algo a respeito com o pouco tempo que nos é dado viver (e aqui há dois caminhos: ou se busca um sentido na vida, ou se admite que não existe nenhum e que portanto a existência é nossa para que nós a criemos, para que nós a demos um sentido), gastamos nosso tempo apenas seguindo o caminho que nos é apontado. Somos atores que entraram numa peça que já estava em andamento; no entanto, ao invés de buscar entender o enredo, ver o que o script tem de bom e ruim e tentar atuar na história para que ela tome o rumo que nós achamos mais adequado, contentamo-nos em fazer o que nos mandam, a seguir estritamente as falas que nos foram dadas sem nem pensar se é realmente isso que queremos fazer. Mas esse é um teatro vazio, meus amigos; não há platéia, e o único valor que a peça terá será aquele que você conseguir lhe imprimir.

Muitos adaptam-se às estruturas pré-estabelecidas para alcançar o conforto, a ausência de sofrimento; não percebem o absurdo que essa atitude representa, pois adaptar-se a um modelo significa abrir mão daquilo que se é por dentro. Qual o sentido de levar uma vida confortável e amena se ela significa ser apenas mais uma peça, mais um que renegou a própria essência? Se o destino de todos nós é a morte, não adianta buscar essa fuga que é o conforto, esse retardamento do inevitável; mais vale morrer na miséria, mas sem se render à ideologia do absurdo, essa morte em vida.

O cursinho é apenas o começo, meus caros; se vocês o consideram algo aceitável, talvez esteja na hora de começar a rever seus valores, antes que seja tarde demais.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

domingo, 10 de agosto de 2008

Anti-presente

Algum dia, muitos anos atrás, um economista astuto que analisava gráficos de vendas percebeu que Junho não era um mês muito rentável. Bom conhecedor que era das leis ocultas que regem o mercado - o princípio humano por debaixo da movimentação aparentemente impessoal de enormes somas de dinheiro - sabia que o melhor modo de esquentar as vendas era apelar para o aspecto potencialmente comercial de uma comemoração, confiando na moderna obrigação inconsciente de consumar as relações pessoais por meio da compra de presentes. E assim, seguindo a regra número um da sociedade de consumo ("Se não existe uma demanda para explorar, crie uma nova!"), estava criado o singelo e adorável Dia dos Pais (por que não? Já existia um "Dia das Mães", afinal de contas).

Existe algum tipo de obrigação oculta que faz com que as pessoas adiram incondicionalmente a qualquer coisa que esteja oficialmente impressa em um calendário, e assim todos logo aceitaram sem questionamentos o novo e arbitrário fato de que o terceiro Domingo (e não poderia ser em outro dia da semana, claro, porque o ano já tem feriados demais para furtar as engrenagens à máquina) do mês de Junho (ou em datas diversas igualmente arbitrárias, dependendo da necessidade comercial de cada país, dentre as quais vale destacar o segundo Domingo de Agosto, dia da celebração em território tupiniquim) é o dia em que todos devem subitamente celebrar o milagre da paternidade.

É claro que o aceitamento e incorporação de datas comemorativas é facilitado por uma importante tendência contemporânea: a de compartimentalizar o tempo, organizando a vida em torno de uma rotina artificial. Assim, cada pessoa carrega uma espécia de calendário interno, com anotações do tipo "25 de Dezembro: reunir a família e simular um clima de confraternização e amor" ou "1º de Janeiro: ficar eufórico com o fato de a Terra ter completado nova volta ao redor do Sol e acreditar que, por algum motivo, tudo mudou". Mas o Dia dos Pais é algo ainda mais artificial, por ser inteiramente uma fabricação, sem qualquer raiz em um motivo histórico de comemoração como "festival da colheita" ou "nascimento de um importante líder religioso".

Como alguém pode aceitar que exista um "Dia dos Pais"? Como alguém pode aceitar que se marque no calendário um dia para se desejar "feliz dia dos pais", comprar presentes e dizer coisas do tipo "ele merece, é o dia dele"? Ser pai é um processo, não um dia; é uma relação que se constrói a custa de muito conflito, não de um convívio pacífico e amoroso fingido numa data específica. Guardem o sentimentalismo barato para o Natal.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Os dois imortais - Parte II

Recomenda-se que a parte I seja lida primeiro.

“(...)

Quando cheguei ao casebre de pedra, mal contive minha agitação ao bater três vezes na porta. Assim que o homem abriu a porta, tive certeza de que ele era exatamente aquilo sobre o qual ouvira falar: reconheci em seu rosto a mesma expressão de irônico desdém de quem já viu demais, as mesmas feições de idade indefinível. Sabia, no entanto, que ele não me reconhecera como um igual; assim, antes que ele pudesse dizer qualquer coisa para me dispensar, adiantei-me:

‘Sou um imortal como você, embora suspeite que tenha nascido depois. Nos últimos anos tenho pensado em me matar; gostaria de saber porque você ainda não o fez.’

O outro ficou quieto; apenas indicou, com um gesto, que eu deveria entrar. Sentamo-nos em uma sala parcamente mobiliada, ele em uma poltrona e eu em uma cadeira de madeira levemente carcomida.

‘Já percebeu, então, que a imortalidade é uma maldição tanto quanto é uma bênção’, disse ele, após alguns minutos de silêncio. Limitei-me a menear a cabeça afirmativamente; ele contemplou meu rosto por alguns segundos, e continuou: ‘Quando criança, sempre tive muito medo da morte. À medida que os anos se passaram e eu não só não envelheci na mesma velocidade que meus companheiros como também sobrevivi além do tempo de vida de todos eles (bem como de seus filhos e de seus netos), senti-me como que grandemente abençoado: a mim, justo a mim, fora concedido ser livre das correntes impiedosas do tempo! Eu estava destinado a não carregar o grande peso da condição humana!’

‘Foi exatamente o que eu pensava no início’, respondi.

‘Os seres humanos são previsíveis; estão presos à eterna busca pelo conforto. Sei que o que digo não é novidade para você; é fácil imaginar qual a reação de qualquer pessoa à novidade de não precisar lidar com o sofrimento futuro’

‘Os seres humanos são previsíveis demais... o mundo é previsível demais...’

Ele limitou-se a gargalhar.

‘Você fala do ponto de vista da Eternidade... já deve ter se acostumado a esse tipo de vida. Um homem comum, vivendo seus sessenta ou setenta anos, contenta-se com o espetáculo da vida, e até pede por mais ao fim; mais alguém como nós é capaz de perceber os padrões que se repetem, as multidões que, apesar das conjunturas, continuam buscando a mesma coisa, e por isso o tédio é inevitável’

‘Mas mesmo assim você continua vivo.’

‘É possível matar um imortal? Não sei se conseguiria me suicidar mesmo que quisesse. Mas mesmo assim, há muitos anos cheguei a uma conclusão – tirar a própria vida é tão sem sentido quanto continuar vivendo. Tornar-me nulo equivale a viver uma vida nula neste mundo; e caso exista algum tipo de vida após a morte, acabarei indo para lá de qualquer jeito. Já vivi até agora – para que terminar com tudo? Quando a humanidade já tiver se esvaído desse planeta, caminharei sozinho pelos desertos silenciosos, uma solidão não de todo diferente daquela que vivo a cada dia de minha vida, ser único que sou.’

‘Você não caminhará sozinho. Eu também estarei lá.’

‘É o que veremos...’

Depois conversamos apenas sobre trivialidades; quis saber que tipo de coisa ocupava seus dias, e ele me disse que há muito tempo decidira empenhar-se em desempenhar tarefas que só ele poderia realizar, como contar a areia de uma praia. Ele desistira ao perceber que aquilo que se entendia por ‘praia’ não era eterno e estava em constante mutação com as marés; percebeu que aquela tarefa era análoga ao árduo trabalho diário de desembaralhar a confusão a que chamamos de realidade, de dar um sentido à essa vida que talvez não admita um sentido, e Deus (e por que é que invoco seu nome? Puro uso de uma expressão, ou alguma secreta esperança de que haja algo além desse cotidiano enfadonho, algo que me concedeu a imortalidade para que eu desempenhe algum papel obscuro?) sabe que eu, mais do que ninguém, tenho consciência do enorme absurdo que é a vida. O outro imortal, no entanto, passa seus dias sozinho, vivendo o Absurdo em sua expressão máxima; não sei se é louco ou santo, talvez os dois.

Ao encerrar a visita e me afastar da casa, joguei o revólver que carregava comigo em um lago profundo. Começo a achar que errei; sinto que algum dia voltarei para buscá-lo, e talvez seja lá que eu termine meus infindáveis dias.”


quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Os dois imortais - Parte I

Em uma jogada até agora inédita neste blog, que visa não só a aumentar o número de coisas que eu tenho para postar como também a me dar mais tempo para revisar o texto e também criar um certo suspense, dividirei um texto unusualmente longo em duas partes. Segue agora a primeira.

Demorou um tempo considerável para que se percebesse qual era a grande particularidade do habitante daquele casebre de pedra – uma habitação totalmente comum e até mesmo vulgar – numa estrada florida e pouco movimentada nos arredores de Lyon. Na verdade, para que se suscitasse algum interesse sobre ele foi necessário que um funcionário público percebesse, durante o enfadonho processo de digitalizar documentos antigos do Ministério da Economia, que os impostos referentes à casa estavam sendo pagos pela mesma pessoa há 107 anos – em suma, desde que o terreno (que antes era nada mais do que parte de um bosque) havia sido delimitado e registrado.


Em parte por curiosidade e em parte para averiguar alguma possível atividade suspeita ou ilegal, o funcionário resolveu investigar a situação. Em visita de inspeção ao terreno em questão, descobriu que era uma casa literalmente caindo aos pedaços – partes do teto e das paredes externas estavam totalmente arruinadas – aparentemente habitada por um único homem, um senhor de face sulcada e expressão cansada, cujos ralos cabelos grisalhos eram pontilhados por um ou outro fio negro. O homem demonstrou acentuada impaciência quanto às perguntas que lhe foram propostas e não colaborou com a investigação, recusando-se a revelar quaisquer informações sobre si próprio ou a comentar sobre se era ele o homem em cujo nome estava registrado o terreno e que pagara os impostos no último século.


Por estar realizando uma investigação informal e extra-oficial, sem um mandato, o funcionário foi obrigado a colher as informações que buscava com os moradores das proximidades. Aquela região rural trazia tanto um impedimento quanto um benefício à investigação – apesar de, sendo uma zona de povoação rarefeita, não estar sujeita à constante vigilância mútua da cidade, ela obedecia à primeira lei da vida no campo: cada fato que se podia espreitar da vida alheia ganhava muito mais importância, e era discutido e lembrado por muito mais tempo.


Conversando com as famílias da região – pequenos agricultores e donos de manufaturas caseiras, em sua maioria – foi possível descobrir algumas informações sobre o habitante da propriedade suspeita. Era um homem bastante misterioso – raramente saía de casa e parecia não manter relações com o mundo exterior. Não se sabia no que ele trabalhava, se é que trabalhava, ou o que exatamente ele fazia.


No entanto, a informação mais intrigante veio de um senhor de idade (que devia ter no mínimo noventa anos, embora não houvesse informado sua idade exata) que morara naquela região por toda a sua vida. Segundo ele, desde que se conhecia por gente o misterioso dono da misteriosa casa habitava aquele mesmo local; ele também disse que no decorrer de sua vida, quando fora de criança a adulto a homem velho, o habitante da casa não parecera envelhecer um ano sequer.


Confuso e sem obter a cooperação do objeto da investigação, o funcionário público voltou para casa sem encontrar as respostas que buscava. Apesar de duvidar da precisão das informações fornecidas pelo homem idoso – afinal, como podia o outro homem não ter envelhecido? – passou a contar o caso a título de curiosidade sempre que se encontrava reunido com um grupo de possíveis ouvintes.


A história foi de particular interesse a um historiador especializado no período medieval na Península Ibérica; investigar o passado do homem misterioso tornou-se seu hobby e, eventualmente, sua obsessão. Examinando documentos antigos, que tratavam da movimentação nas estradas da porção ocidental da França, encontrou relatos de um viajante cuja descrição batia com a impressão que ele tivera do homem misterioso ao visitá-lo, numa ocasião em que o diálogo provara-se tão infrutífero quanto havia sido com o funcionário público.


Viajando pela Europa atrás de documentos relacionados ao homem misterioso, o historiador encontrou indícios de que ele vivera em Córdoba por cinco anos, após chegar de Praga, cidade na qual vivera em 1856. Antes disso, havia morado também em Londres e Moscou, cidades nas quais vivera por, respectivamente, 103 e 221 anos; e em Istambul ele havia encontrado os registros mais antigos acerca de sua existência, datados do ano de 1066, quando a cidade ainda se chamava Constantinopla. O historiador não se impressionava com as datas; tinha certeza de que, em todos aqueles casos, o homem referido era exatamente o que ele procurava. Ao voltar para Paris, compilou todas as suas pesquisas e notas em um tratado no qual afirmava ter feito a maior descoberta dos últimos séculos – o homem que morava na pacata estrada de Lyon era um imortal, testemunha de incontáveis acontecimentos do último milênio e talvez até mesmo de toda a história da Humanidade!


O tratado do historiador foi recebido com desdém e ceticismo pela comunidade científica, e posteriormente relegado à obscuridade. Se essa história é hoje contada, é tão somente por causa dos curiosos fatos narrados em um manuscrito que foi encontrado abandonado em um quarto de hotel em Edinburgo.


O autor do manuscrito afirma ter ido procurar o homem de Lyon tão logo leu a tese do historiador; suas palavras são reproduzidas em parte a seguir.




A reprodução você encontra aqui no DCC daqui a dois dias!


segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Confissão

Bom. Esse é o início de uma tentativa de retomar a periodicidade de outrora (que, caso ninguém tenha reparado, era de uma publicação a cada dois dias, alternando entre eu e o Tchubas [mesmo que, diga-se de passagem, eu tenha coberto o turno do Arthurzinho mais do que uma vez]). Como eu sou um dos poucos que conservaram algum resquício de sanidade e portanto não estão no cursinho (para que essa obsessão de entrar direto na faculdade, pessoal?), espero ter tempo suficiente para fazer o trabalho que antes era dividido entre duas pessoas, e de quebra surpreender meus atribulados colegas, que sempre que arranjarem um tempinho em sua correria diária para fazer algo além de estudar poderão encontrar aqui algo novo.

Acaba aqui a primeira parte desse post, que, além de um pronunciamento, era também um gancho para a segunda parte - a "confissão" em si.

Apesar de ter prometido continuar com a regularidade pré-férias, não sei se estou à altura disso. O que muitos não sabem é que a interrupção das publicações nas férias - pelo menos de minha parte - não foi somente uma pausa para descanso e uma aceitação do fato de que grande parte dos nossos leitores estava viajando; foi também um período em que eu não escrevi quase nada, não só para o blog como também qualquer outroa coisa.

E agora vem um momento um pouco mais intimista e pessoal do que o que esse blog costuma ser (mas tudo bem, porque agora que o Tchubas lavou as mãos, ele é tecnicamente meu e eu faço o que eu quiser aqui). A verdade é que o meu processo de escrita nasce na solidão. Não necessariamente a solidão física (ou "isolamento"), mas o sentimento de solidão (e que pode ocorrer em um lugar movimentado, como uma sala de aula) - algo que é difícil de explicar, mas que é uma espécie da apartamento da sociedade, do caos cotidiano, que dá conforto e propicia a criatividade. E as férias não são exatamente um período de solidão, mas sim de confraternização, socialização, e o que o valha - ou seja, tem todo um clima que cria uma espécie de bloqueio mental à escrita, pelo menos em mim.

O que vem ocorrendo, no entanto, é que esse clima "férias" tem se estendido além do limite das férias em si; é uma mudança um tanto radical no meu modo de pensar, mas ultimamente eu tenho tido uma certa aversão ao sentimento de solidão (que não necessariamente significa "estar sozinho", como já foi demonstrado).

Todo esse "blá blá blá" só para dizer: talvez eu não cumpra o que eu semi-prometi no primeiro parágrafo. Mas tudo bem, porque eu já tenho algo preparado para o próximo post, então a regularidade vai durar por pelo menos uma ocasião.

Até lá, e vejamos o que o futuro nos reserva.