sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Uma questão de ponto de vista

- E aí, cara? Tudo pronto?

- Tudo à pampa... vambora, vamo pegar a estrada logo...

- Você... você tá levando... aquilo?

- Sim, tá numa caixinha dentro da minha mala. Eu mesmo preparei hoje de manhã. Tô te falando, o negócio é de qualidade...

- Da hora, da hora...

- Usei chocolate suíço pra fazer, e aquele leite condensado extra cremoso...

- Putz, tá forte o bagulho... temo que ter cuidado pra não dar bandeira, hein...

- Relaxa, relaxa, você sabe que eu sou de boa...

- Você acha que não tem perigo da polícia parar a gente?

- A essa hora da manhã? E também, se pararem, qual o problema? É só agir natural... não sei se você sabe, mas nem todo mundo que vai pra praia no feriado é brigadeireiro.

- Putz, tô ouvindo uma sirene... ai, caralho, por que é que eu tinha que falar nisso... tão me mandando parar. O que que eu faço?

- Relaxa, cara, relaxa... oh, o tira tá vindo aí... não vai entregar o jogo, hein!

- Bom dia, bom dia....

- Bom dia, senhor.

- Indo pro litoral?

- É... faz tempo que não tem feriado, né? Tem que aproveitar...

- E vocês vão ficar aonde?

- Um amigo nosso tem casa em Maresias...

- Certo, certo... o senhor poderia mostrar o porta-malas? O senhor entende, só estou realizando uma vistoria padrão....

- Claro, claro, por que não? Um momentinho...

- Certo, certo... eu posso abrir a mala?

- Claro, claro...

- Hmmm... hmmmm... e o que é isso aqui nessa caixinha, você pode me explicar?

- Isso? Não é nada, senhor... é só maconha....

- Maconha, é? Sei, sei... olha, pra mim isso aqui tá com cara de brigadeiro!

- Brigadeiro? Não, senhor... imagine, eu, levando brigadeiro na mala? Não, eu tô falando, senhor, isso aí é maconha...

- Sei, sei. E a vovó não mandou ecstasy e LSD também, por acaso? Eu reconheço um brigadeiro quando vejo um, rapaz. Bom, vamos ver como vocês explicam isso pro delegado. Alfredo, leva esses dois pra viatura. César, pode fazer o B.O., nós vamos apreender isso aqui.

- Sim, senhor. É quindim, senhor?

- Não, não, felizmente não é nada desse tipo. Só dois moleques levando brigadeiro pra praia. Parece que esses adolescentes só conseguem se divertir se for com doces... e o desgraçado ainda tentou me convencer que era maconha.

- Logo se vê que os dois são iniciantes... quer dizer, o pessoal geralmente esconde doces dentro de papelotes de cocaína... mas esses aí tavam simplesmente levando o brigadeiro na moral, como se fosse crack ou algo do tipo.

- Bom, pelo menos eles ainda não partiram pra paçoca ou pro mocotó.

- Mas com essa juventude, nunca se sabe... Ei, chefe, posso te perguntar uma coisa?

- O que foi, César?

- O senhor é a favor da legalização do brigadeiro?

- Você quer minha opinião como policial ou como pessoa?

- Como pessoa, claro.

- Olha, acho que as pessoas devem ser livres pra fazer o que bem entenderem, sem que precise morrer gente no tráfico para isso. Quer dizer, já está comprovado que o açúcar faz mal para a saúde, não está? Se as pessoas quiserem consumir mesmo assim... bem, o problema é delas, não meu.

- Esse mundo seria um lugar melhor se todos pensassem como o senhor sobre o açúcar, chefe...

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Pré-escola

- O que é o seu desenho, Pedrinho?

- É o Sol, professora.

- Que lindo Sol, Pedrinho! E o seu, Renata?

- É a minha mamãe...

- Puxa, que lindos os cabelos verdes da mamãe! Vejamos o seu, Roberto... nossa, quantas cores! O que é isso?

- É uma composição abstrata com tendências cubistas que representa a complexa inter-subjetividade humana, que molda dinamicamente as sociedades e os indivíduos de acordo com um Ethos cambiante dirigido por valores em constante transformação.

- Que gracinha, Roberto! Está muito legal, mas que tal você desenhar a sua família ou o seu animalzinho de estimação?

- Tola, mil vezes tola! “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!”, disse Salomão. A disposição de pigmentos em um papel jamais poderia encapsular a essência objetiva da realidade; o Homem é um triste animal cego, tropeçando pelo mundo e tentando em vão defini-lo, encontrar um lugar, prender em seus livros e em sua moral e em seus costumes a matéria fugidia e elusiva que compõe a existência. Para quê curvar-se à ilusão de que é possível capturar a serpente esguia, criar uma ilha de racionalidade em meio ao caos? Do pó viemos e ao pó voltaremos, e tudo o que se passa nesse interregno são meras mudanças de estado físico! Adeus, corja de paralíticos presunçosos! Prossigam sem mim na doce ilusão de viver no inferno o paraíso!

- Crianças, o papai e a mamãe não precisam ficar sabendo que o amiguinho se jogou pela janela, combinado? Agora, quem quer ser o próximo a mostrar o desenho?

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Ode ao Tietê

Oh! Formoso manancial
Carregas à tua mercê
Até a mais orgulhosa nau
O teu nome: Tietê

Refúgio dos esbaforidos
Oásis oportuno
Já foste, em tempos já idos
A jóia de Netuno

Hoje tens o próprio valor
Libertastes-te do deus mesquinho
Nos encanta com o candor
Do teu doce burburinho

Tietê! És o resumo
De tudo quanto é belo e bom
Do teu curso o aprumo
É certamente o maior dom

Tuas águas fulgurantes
Abrigam ninfas em seu seio
Das tuas margens reconfortantes
A visão me dá anseio

És perfeito, belo rio
E lendária é tua glória
És símbolo do Brasil
E emblema da vitória

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Três condições curiosas

O homem que desenhava na água


Na infância, não se poderia dizer que ele fosse dotado de um espírito particularmente artístico; nunca havia se interessado pelas caixas de tintas e lápis de cor com as quais sua tia, que era pintora, teimava em lhe presentear todo Natal. No dia das mães, todas as outras crianças chegavam da escola com coloridas pinturas a dedo, com amontoados difusos de tinta que, nas palavras entusiasmadas dos pequeninos, representavam a mamãe como uma rainha linda ou lutando contra alienígenas; já ele limitava-se a dar um abraço e um beijo.

Certo dia, no entanto, quando sua mãe foi colocar a ração do cachorro, surpreendeu-se ao ver a imagem de um barco à vela flutuando na superfície da água da outra tigela. Olhou para cima e confirmou que aquilo não era o mero reflexo de uma imagem; com o dedo, ela agitou a água, mas, cessadas as perturbações, a imagem do barco continuava lá, como se certas moléculas de água houvessem se tornado coloridas e estivessem mantendo a mesma posição no espaço.

Alguns dias depois veio a solução do enigma da figura na água, tão estarrecedora quanto o caso em si: ao entrar no banheiro, a mãe encontrou o filho na ponta dos pés em cima de uma cadeira, debruçado sobre a borda da pia; ao aproximar-se, ela constatou boquiaberta que ele estava desenhando na água da pia, que estava cheia e conservava-se assim porque um tampão vedava o ralo. Quando ele deslizava o dedo pela água, a superfície se coloria e ia formando um desenho.

Com o passar do tempo, ele foi aperfeiçoando sua estranha arte; passou a desenhar em corpos d’água mais amplos. Certa vez usou uma fonte para criar uma fantástica pintura em movimento; no aniversário de sua melhor amiga, trabalhou por um fim de semana inteiro usando uma roupa de mergulho para criar uma pintura tridimensional na piscina da sua casa; quando o Natal se aproximava, usou um pequeno bote para desenhar uma enorme pintura abstrata no lago da cidade, e quando sua superfície se congelou as pessoas podiam patinar no gelo e desenhar sobre sua obra com os rastros de seus patins, tornando-a uma criação coletiva.

Sua renda mensal era alimentada por diversas contratações para elaborar a decoração de festas e eventos e criar efeitos para filmes. Quando a NASA desenvolvia os primórdios de seu programa espacial e enfrentava o problema de como estabelecer comunicação com astronautas em órbita ao redor da Lua, considerou contratá-lo para escrever gigantescas mensagens no oceano que pudessem ser lidas pelos tripulantes das naves espaciais; esta opção foi descartada quando argumentou-se que os astronautas não teriam meios de responder as mensagens. Em uma ocasião, ele sobrevoou de asa delta uma grande cidade, atravessando as nuvens carregadas suspensas sobre ela; naquele dia, a chuva foi colorida.

Quando ele percebeu que já havia levado sua arte ao extremo do requinte e as suas possibilidades já estavam quase esgotadas, decidiu que estava no momento de produzir sua obra final, algo que já planejava há muitos anos. Em um dia nublado, alugou um pequeno barco a vapor e partiu sozinho para o mar; desejava criar uma pintura que cobrisse todo o oceano, que transformasse a aparência do próprio planeta Terra.

Nunca mais foi visto, mas até hoje fragmentos de pinturas chegam à praia carregados pelas ondas, persistem por segundos na areia e então desvanecem.

O sinesteta


Vladmir era um sinesteta. Mas não no sentido que os neurocientistas costumam atribuir ao termo, utilizando-o para descrever casos curiosos de sua profissão na qual um embaralhamento das atividades das diferentes zonas cerebrais cria associações entre percepções de diferentes sentidos; não, Vladmir realmente experimentava a realidade de uma forma diferente, inimaginável para qualquer ser humano comum. Em sua mente não existia uma distinção clara entre as informações que ele captava através de seus sentidos; o mundo, para ele, era um sistema unívoco, composto por percepções integradas.

Ao contrário das outras pessoas, que destrinchavam a realidade, separando-a em categorias de percepção como “visual” ou “auditiva”, Vladmir sentia um único ritmo harmônico que abarcava tudo ao seu redor; era como se ele ouvisse – ou melhor, sentisse – uma orquestra inteira, enquanto os outros podiam apenas ouvir violinos ou pianos.

Com o passar dos anos, no entanto, ele tornou-se capaz de controlar a forma como sua mente registrava as percepções unívocas que chegavam a ela. Dessa forma, ele conseguia simular a condição humana comum, percebendo os elementos da realidade através de um único sentido; porém, como as limitações da percepção humana convencional nunca o haviam restringido, seu modo de sentir o mundo quase sempre diferia do convencional. Ele podia, por exemplo, ouvir as pessoas, ao invés de vê-las; se ele as via como uma sinfonia, era sinal de que estavam atravessando um momento de conflito; se as via como uma sonata, era sinal de que estavam apaixonadas.

Sua primeira namorada fora um aroma de camélia; o dia em que sua mãe morreu, uma queimadura profunda. Certa vez havia tentado aventurar-se nas artes, para tentar exprimir a forma como via o mundo; ao contrário dos outros que haviam se lançado em tal empreitada no passado, no entanto, o seu modo de viver era exclusivo demais, e uma comunicação não podia ser estabelecida com os espectadores. Van Gogh nunca chegou a ser compreendido em vida, mas pelo menos ele via imagens e ouvia sons, e produzia sua arte segundo essa separação fundamental; já a obra que Vladmir produzira não era nem uma música, nem um livro, nem um quadro nem uma coreografia, mas sim uma espécie de absurda mistura entre todas essas mídias, algo que causou um estranhamento profundo em todos aqueles que presenciaram sua execução e mais de uma proposta de internação em um manicômio. Desolado, ele desistiu da vocação artística e nunca mais apresentou aquilo que, segundo fontes, ele chamara de “Dó Ré Mi Verde”.

A habilidade de Vladmir foi finalmente valorizada quando seu estranho caso chegou ao conhecimento de um membro do alto escalão da CIA, que percebeu que sua percepção diferenciada da realidade poderia ser usada a serviço da segurança nacional. Ao ver as pessoas na forma de música, por exemplo, ele desnudava as camadas mais íntimas do indivíduo, e poderia perceber terroristas em potencial; da mesma forma, percebendo visualmente os cheiros ele poderia identificar vazamentos de gases nocivos ou rastrear carregamentos de drogas.

Vladmir morreu tragicamente enquanto liderava uma operação anti-bombas; como ele via os fios “trinado de pássaro” e “gosto de lasanha” ao invés de “verde” e “vermelho”, ele cometeu um equívoco e infelizmente cortou o fio errado.

O assassino metalingüístico



Não habitava uma dimensão propriamente dita; seu reino era a dimensão entre o real e o imaginário. Sua existência dependia da ação criativa de um outro; não possuía corpo, e só se cristalizava em um ser quando algum escritor pressentia sua presença e o encarnava em um personagem, transmutando-o em uma nova aparência e adequando as nuances de sua personalidade ao novo avatar.

Dessa forma, já havia sido o capitão Ismael, na frenética caça à Moby Dick; o Professor Moriarty, constantemente tramando contra Sherlock Holmes; Phileas Fogg, em sua ousada volta ao mundo em 80 dias; Tom Sawyer, Jay Gatsby, Auguste Dupin, Horacio Oliveira, Ulisses, Werther, Bento Santiago...

Ao ser novamente despertado de sua catalepsia para ingressar no mundo palpável da palavra escrita, aproveitou-se de uma inédita obscuridade proporcionada pela ausência de descrições para infiltrar o mundo real sorrateiramente, galgar as escadas munido do punhal e adentrar incógnito o quarto onde o insuspeito escritor, crente na ficcionalidade de seu relato, perpetrava o seu ofício momentos antes de ser brutalmente assassinado, deixando inconclusa sua obra e dissolvendo assim a existência de seu próprio assassihwrij9q3t-h

domingo, 9 de novembro de 2008

Entrevisões de um mundo a parte

Uma das coisas mais estranhas que existem é aquele momento entre a vigília e o sono, quando a barca de Morfeu já deixou o porto mas você ainda não está totalmente hipnotizado pela viagem e ainda consegue - com algum esforço - processar conscientemente o que está acontecendo. Estes momentos possuem toda a magia onírica de um sonho, com a diferença de que você tem um certo sentimento de controle - não parece um filme ao qual você está assistindo, mas sim algo que você realmente está pensando, por mais absurda que a lógica desses pensamentos seja.

A parte triste é que, quando você realmente se dá conta de que um desses momentos está acontecendo, geralmente você acorda e acaba esquecendo em questão de instantes o que estava pensando. Tive a sorte de conservar na memória uma dessas divagações, ocorrida na quinta-feira passada; compartilha-la-ei enquanto não me disponho a preparar algo melhor para a publicação neste diário virtual.

Era basicamente o seguinte: eu comecei a pensar que havia um certo homem, ao qual todos se referiam como "Mr. Robert", que todas as pessoas do planeta conheciam. A opinião pública sobre Mr. Robert era unânime: todos o admiravam. Sua notoriedade acabava gerando certas situações que pareceriam inusitadas a nós do mundo real, que não estamos acostumados com a onipresente celebridade de Mr. Robert; por exemplo, em uma certa ocasião na qual ele aparecia na TV junto com uma figura cujo renome é para nós absoluto - o Pelé, por exemplo (não lembro exatamente quem era, só lembro da situação) - uma pessoa que assistia perguntava, desinteressadamente: "Quem é aquele negrinho do lado do Mr. Robert?"

Bom, é basicamente isso. Espero ter conseguido apresentar a vocês uma pequena curiosidade recolhida diretamente do vasto mundo inexplorado do inconsciente.

Uma boa noite a todos (ou não, porque quem dorme bem nunca consegue acordar no momento propício para lembra desse tipo de coisa).

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Sobre andar por aí com um abacaxi na cabeça

Ninguém poderá negar as inumeráveis vantagens de se andar com um abacaxi na cabeça, e só fecharão os olhos para o grande bem que se pode extrair dessa experiência única aqueles que são por demais sisudos para resistir à classificar esse saudável hábito como infantil e moralmente repreensível, incabível em um homem sério e de bom caráter.

Deixando de lado o problema da resistência à essa atividade (que pooderá, afinal, ser combatido com um simples argumento lógico: em quê o ato de andar com um abacaxi na cabeça é diferente, por exemplo, do ato de andar com um aro de metal ao redor do pulso ou com dois cilindros de pano ao redor das pernas?), passemos à descrição da aividade em si. Como sempre, uma imagem diz mais do que mil palavras, e portando será imprescindível que o leitor imagine (imaginar: imagem+ar; munir-se do giz de cera mental e rabiscar na margem da página, conjurando em pleno ar uma ilustração para o texto, uma visão pessoal e intransferível da idéia que se entrevê entre as palavras, e já chega de interrupção) a situação prposta - isto é, deve imaginar-se andando por aí com um abacaxi na cabeça, desfrutando dessa condição libertadora e causando frisson (dissimulado com graus variados de sucesso) entre os estupefatos transeuntes.

Em primeiro lugar, é importante fazer uma observação de caráter pragmático: as variedades da fruta cultivadas nas selvas tropicais de Bornéu são as mais convenientes para este fim, pois suas grandes proporções permitem que o abacaxi possa ser encaixado diretamente na cabeça mediante a preparação apropriada da fruta (que consiste em cortar longitudinalmente a porção inferior e remover a polpa). Caso contrário, além dessa preparação será necessário implementer alguns ajustes técnicos à estrutura orgânica, como a adição de uma fivela ajustável ou de eletroimãs (neste último caso, é necessário usar uma auréola magnética ao redor da cabeça para manter o abacaxi seguramente encarapitado no cocoruto), para que se possa circular com desenvoltura sem que o abacaxi caia a todo momento.

Ultrapassadas estas primeiras dificuldades práticas, o leitor estará pronto para sair às ruas coroado por um vistoso abacaxi; durante esta etapa da concretização da empreitada há muito teorizada e planejada virá o primeiro estranhamento, e é justamente esse o grande benefício derivado da utilização do abacaxi como acessório cefálico. É claro que existe uma ampla gama de benefícios secundários, como a nutrição e hidratação dos cabelos pelas substâncias químicas encontradas no abacaxi e a extravagante quebra com a monotonia do guarda-roupa cotidiano, mas o que realmente exalta os adeptos dessa curiosa peça de vestuário é sua utilidade como martelo: um martelinho que consegue quebrar um buraco na sufocante parede do hábito e da vida cotidiana, permitindo experimentar uma fugidia noção de maravilhamento e de descrença quanto à monolítica realidade que nos é apresentada como absoluta. Ao sair à rua, ao misturar-se às pessoas e casas e árvores de sempre, o usuário do abacaxi não poderá deixar de sentir-se apartado da rotina por sua estranha condição, não poderá conter alguma versão do seguinte pensamento: "Cara, eu estou andando por aí com um abacaxi na cabeça... isso é uma espécie de desconstrução da realidade; em face disso, tudo é possível. Por que me olham com essa cara? Por que andar com um abacaxi na cabeça seria mais absurdo do que o fato de que existem pesssoas andando por aí? O que é o abacaxi, o que são as pessoas?"

Infelizmente, a cinzenta operação mental chamada costume eventualmente assimilará o abacaxi, cobrindo com o veludo do hábito o buraco no muro. Talvez o tiro até saia pela culatra; o abacaxi viraria uma moda, totalmente desvinculada de seu significado original: apenas mais um acessório, mais um atributo adquirível para tentar tampar aparentes buracos na própria personalidade; milhares de pessoas andando pelas ruas vestindo abacaxis, Gisele Bündchen desfilando impassível e blasèe com um enorme abacaxi na cabeça.

Consideração final: Nem sempre os abacaxis são frutas amarelas e espinhudas com folhas verdes pontiagudas; eles tem o fugidio costume de esconder-se sob os mais variados disfarces, como o riso de um amigo, a roda de uma bicicleta, um gorro andino ou um parágrafo de um livro.