segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Sobre andar por aí com um abacaxi na cabeça

Ninguém poderá negar as inumeráveis vantagens de se andar com um abacaxi na cabeça, e só fecharão os olhos para o grande bem que se pode extrair dessa experiência única aqueles que são por demais sisudos para resistir à classificar esse saudável hábito como infantil e moralmente repreensível, incabível em um homem sério e de bom caráter.

Deixando de lado o problema da resistência à essa atividade (que pooderá, afinal, ser combatido com um simples argumento lógico: em quê o ato de andar com um abacaxi na cabeça é diferente, por exemplo, do ato de andar com um aro de metal ao redor do pulso ou com dois cilindros de pano ao redor das pernas?), passemos à descrição da aividade em si. Como sempre, uma imagem diz mais do que mil palavras, e portando será imprescindível que o leitor imagine (imaginar: imagem+ar; munir-se do giz de cera mental e rabiscar na margem da página, conjurando em pleno ar uma ilustração para o texto, uma visão pessoal e intransferível da idéia que se entrevê entre as palavras, e já chega de interrupção) a situação prposta - isto é, deve imaginar-se andando por aí com um abacaxi na cabeça, desfrutando dessa condição libertadora e causando frisson (dissimulado com graus variados de sucesso) entre os estupefatos transeuntes.

Em primeiro lugar, é importante fazer uma observação de caráter pragmático: as variedades da fruta cultivadas nas selvas tropicais de Bornéu são as mais convenientes para este fim, pois suas grandes proporções permitem que o abacaxi possa ser encaixado diretamente na cabeça mediante a preparação apropriada da fruta (que consiste em cortar longitudinalmente a porção inferior e remover a polpa). Caso contrário, além dessa preparação será necessário implementer alguns ajustes técnicos à estrutura orgânica, como a adição de uma fivela ajustável ou de eletroimãs (neste último caso, é necessário usar uma auréola magnética ao redor da cabeça para manter o abacaxi seguramente encarapitado no cocoruto), para que se possa circular com desenvoltura sem que o abacaxi caia a todo momento.

Ultrapassadas estas primeiras dificuldades práticas, o leitor estará pronto para sair às ruas coroado por um vistoso abacaxi; durante esta etapa da concretização da empreitada há muito teorizada e planejada virá o primeiro estranhamento, e é justamente esse o grande benefício derivado da utilização do abacaxi como acessório cefálico. É claro que existe uma ampla gama de benefícios secundários, como a nutrição e hidratação dos cabelos pelas substâncias químicas encontradas no abacaxi e a extravagante quebra com a monotonia do guarda-roupa cotidiano, mas o que realmente exalta os adeptos dessa curiosa peça de vestuário é sua utilidade como martelo: um martelinho que consegue quebrar um buraco na sufocante parede do hábito e da vida cotidiana, permitindo experimentar uma fugidia noção de maravilhamento e de descrença quanto à monolítica realidade que nos é apresentada como absoluta. Ao sair à rua, ao misturar-se às pessoas e casas e árvores de sempre, o usuário do abacaxi não poderá deixar de sentir-se apartado da rotina por sua estranha condição, não poderá conter alguma versão do seguinte pensamento: "Cara, eu estou andando por aí com um abacaxi na cabeça... isso é uma espécie de desconstrução da realidade; em face disso, tudo é possível. Por que me olham com essa cara? Por que andar com um abacaxi na cabeça seria mais absurdo do que o fato de que existem pesssoas andando por aí? O que é o abacaxi, o que são as pessoas?"

Infelizmente, a cinzenta operação mental chamada costume eventualmente assimilará o abacaxi, cobrindo com o veludo do hábito o buraco no muro. Talvez o tiro até saia pela culatra; o abacaxi viraria uma moda, totalmente desvinculada de seu significado original: apenas mais um acessório, mais um atributo adquirível para tentar tampar aparentes buracos na própria personalidade; milhares de pessoas andando pelas ruas vestindo abacaxis, Gisele Bündchen desfilando impassível e blasèe com um enorme abacaxi na cabeça.

Consideração final: Nem sempre os abacaxis são frutas amarelas e espinhudas com folhas verdes pontiagudas; eles tem o fugidio costume de esconder-se sob os mais variados disfarces, como o riso de um amigo, a roda de uma bicicleta, um gorro andino ou um parágrafo de um livro.

4 comentários:

Reggio Tartufo disse...

Legal. Bom. Gostei. Parabéns.

Betomus disse...

tá mt bom o texto.....
sempre seguindo o seu estilo..hauhaua

Reggio Tartufo disse...

se vc aderir eu adiro, eehehe, eu tbm vou aderir.

WoO disse...

Algum espertinho anda lendo Cortázar...

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