segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Três condições curiosas

O homem que desenhava na água


Na infância, não se poderia dizer que ele fosse dotado de um espírito particularmente artístico; nunca havia se interessado pelas caixas de tintas e lápis de cor com as quais sua tia, que era pintora, teimava em lhe presentear todo Natal. No dia das mães, todas as outras crianças chegavam da escola com coloridas pinturas a dedo, com amontoados difusos de tinta que, nas palavras entusiasmadas dos pequeninos, representavam a mamãe como uma rainha linda ou lutando contra alienígenas; já ele limitava-se a dar um abraço e um beijo.

Certo dia, no entanto, quando sua mãe foi colocar a ração do cachorro, surpreendeu-se ao ver a imagem de um barco à vela flutuando na superfície da água da outra tigela. Olhou para cima e confirmou que aquilo não era o mero reflexo de uma imagem; com o dedo, ela agitou a água, mas, cessadas as perturbações, a imagem do barco continuava lá, como se certas moléculas de água houvessem se tornado coloridas e estivessem mantendo a mesma posição no espaço.

Alguns dias depois veio a solução do enigma da figura na água, tão estarrecedora quanto o caso em si: ao entrar no banheiro, a mãe encontrou o filho na ponta dos pés em cima de uma cadeira, debruçado sobre a borda da pia; ao aproximar-se, ela constatou boquiaberta que ele estava desenhando na água da pia, que estava cheia e conservava-se assim porque um tampão vedava o ralo. Quando ele deslizava o dedo pela água, a superfície se coloria e ia formando um desenho.

Com o passar do tempo, ele foi aperfeiçoando sua estranha arte; passou a desenhar em corpos d’água mais amplos. Certa vez usou uma fonte para criar uma fantástica pintura em movimento; no aniversário de sua melhor amiga, trabalhou por um fim de semana inteiro usando uma roupa de mergulho para criar uma pintura tridimensional na piscina da sua casa; quando o Natal se aproximava, usou um pequeno bote para desenhar uma enorme pintura abstrata no lago da cidade, e quando sua superfície se congelou as pessoas podiam patinar no gelo e desenhar sobre sua obra com os rastros de seus patins, tornando-a uma criação coletiva.

Sua renda mensal era alimentada por diversas contratações para elaborar a decoração de festas e eventos e criar efeitos para filmes. Quando a NASA desenvolvia os primórdios de seu programa espacial e enfrentava o problema de como estabelecer comunicação com astronautas em órbita ao redor da Lua, considerou contratá-lo para escrever gigantescas mensagens no oceano que pudessem ser lidas pelos tripulantes das naves espaciais; esta opção foi descartada quando argumentou-se que os astronautas não teriam meios de responder as mensagens. Em uma ocasião, ele sobrevoou de asa delta uma grande cidade, atravessando as nuvens carregadas suspensas sobre ela; naquele dia, a chuva foi colorida.

Quando ele percebeu que já havia levado sua arte ao extremo do requinte e as suas possibilidades já estavam quase esgotadas, decidiu que estava no momento de produzir sua obra final, algo que já planejava há muitos anos. Em um dia nublado, alugou um pequeno barco a vapor e partiu sozinho para o mar; desejava criar uma pintura que cobrisse todo o oceano, que transformasse a aparência do próprio planeta Terra.

Nunca mais foi visto, mas até hoje fragmentos de pinturas chegam à praia carregados pelas ondas, persistem por segundos na areia e então desvanecem.

O sinesteta


Vladmir era um sinesteta. Mas não no sentido que os neurocientistas costumam atribuir ao termo, utilizando-o para descrever casos curiosos de sua profissão na qual um embaralhamento das atividades das diferentes zonas cerebrais cria associações entre percepções de diferentes sentidos; não, Vladmir realmente experimentava a realidade de uma forma diferente, inimaginável para qualquer ser humano comum. Em sua mente não existia uma distinção clara entre as informações que ele captava através de seus sentidos; o mundo, para ele, era um sistema unívoco, composto por percepções integradas.

Ao contrário das outras pessoas, que destrinchavam a realidade, separando-a em categorias de percepção como “visual” ou “auditiva”, Vladmir sentia um único ritmo harmônico que abarcava tudo ao seu redor; era como se ele ouvisse – ou melhor, sentisse – uma orquestra inteira, enquanto os outros podiam apenas ouvir violinos ou pianos.

Com o passar dos anos, no entanto, ele tornou-se capaz de controlar a forma como sua mente registrava as percepções unívocas que chegavam a ela. Dessa forma, ele conseguia simular a condição humana comum, percebendo os elementos da realidade através de um único sentido; porém, como as limitações da percepção humana convencional nunca o haviam restringido, seu modo de sentir o mundo quase sempre diferia do convencional. Ele podia, por exemplo, ouvir as pessoas, ao invés de vê-las; se ele as via como uma sinfonia, era sinal de que estavam atravessando um momento de conflito; se as via como uma sonata, era sinal de que estavam apaixonadas.

Sua primeira namorada fora um aroma de camélia; o dia em que sua mãe morreu, uma queimadura profunda. Certa vez havia tentado aventurar-se nas artes, para tentar exprimir a forma como via o mundo; ao contrário dos outros que haviam se lançado em tal empreitada no passado, no entanto, o seu modo de viver era exclusivo demais, e uma comunicação não podia ser estabelecida com os espectadores. Van Gogh nunca chegou a ser compreendido em vida, mas pelo menos ele via imagens e ouvia sons, e produzia sua arte segundo essa separação fundamental; já a obra que Vladmir produzira não era nem uma música, nem um livro, nem um quadro nem uma coreografia, mas sim uma espécie de absurda mistura entre todas essas mídias, algo que causou um estranhamento profundo em todos aqueles que presenciaram sua execução e mais de uma proposta de internação em um manicômio. Desolado, ele desistiu da vocação artística e nunca mais apresentou aquilo que, segundo fontes, ele chamara de “Dó Ré Mi Verde”.

A habilidade de Vladmir foi finalmente valorizada quando seu estranho caso chegou ao conhecimento de um membro do alto escalão da CIA, que percebeu que sua percepção diferenciada da realidade poderia ser usada a serviço da segurança nacional. Ao ver as pessoas na forma de música, por exemplo, ele desnudava as camadas mais íntimas do indivíduo, e poderia perceber terroristas em potencial; da mesma forma, percebendo visualmente os cheiros ele poderia identificar vazamentos de gases nocivos ou rastrear carregamentos de drogas.

Vladmir morreu tragicamente enquanto liderava uma operação anti-bombas; como ele via os fios “trinado de pássaro” e “gosto de lasanha” ao invés de “verde” e “vermelho”, ele cometeu um equívoco e infelizmente cortou o fio errado.

O assassino metalingüístico



Não habitava uma dimensão propriamente dita; seu reino era a dimensão entre o real e o imaginário. Sua existência dependia da ação criativa de um outro; não possuía corpo, e só se cristalizava em um ser quando algum escritor pressentia sua presença e o encarnava em um personagem, transmutando-o em uma nova aparência e adequando as nuances de sua personalidade ao novo avatar.

Dessa forma, já havia sido o capitão Ismael, na frenética caça à Moby Dick; o Professor Moriarty, constantemente tramando contra Sherlock Holmes; Phileas Fogg, em sua ousada volta ao mundo em 80 dias; Tom Sawyer, Jay Gatsby, Auguste Dupin, Horacio Oliveira, Ulisses, Werther, Bento Santiago...

Ao ser novamente despertado de sua catalepsia para ingressar no mundo palpável da palavra escrita, aproveitou-se de uma inédita obscuridade proporcionada pela ausência de descrições para infiltrar o mundo real sorrateiramente, galgar as escadas munido do punhal e adentrar incógnito o quarto onde o insuspeito escritor, crente na ficcionalidade de seu relato, perpetrava o seu ofício momentos antes de ser brutalmente assassinado, deixando inconclusa sua obra e dissolvendo assim a existência de seu próprio assassihwrij9q3t-h

Um comentário:

Reggio Tartufo disse...

Gostei mais do primeiro texto.
E pra quem reclama tanto de não ter o que postar (a maioria das vezes por preguiça), vc postou demais, poderia ter separado os textos.
Em todo caso, isso é o problema se.
O primeiro texto eu gostei muito.
O segundo menos.
e o terceiro menos ainda.