terça-feira, 14 de outubro de 2008

Fragmento II

No qual se apresenta a justiça absoluta

Aposto que vocês já tinham se esquecido dessa série... recomendo que leiam o anterior para ter no mínimo algum contexto.

Acaso. Nessa única palavra se resume o grande preceito por trás da estruturação da vida. Nos primórdios, sobrevivia a bactéria que por uma conjunção de fatores aleatórios - exposição à radiação, processos metabólicos, etc. - sofresse uma mutação que por acaso a tornasse mais adaptada ao meio. Ao longo da cadeia evolutiva, essa lógica foi se reafirmando - a lógica da sobrevivência dos mais adaptados ou daqueles que calhassem de viver em ambientes mais propícios ao desenvolvimento da vida.

Quando estes seres vivos passaram a arriscar seus primeiros passos no reino da abstração, desenvolvendo esse misterioso processo ao qual chamamos "consciência", a lógica do acaso se adaptou a uma nova forma de existência; agora, conceitos intangíveis também influiam na seleção. Quando a sociedade começou a se estratificar, aqueles que (para citar apenas um exemplo), tendo a sorte de ter observado uma conjunção de fatores, houvessem realizado algum tipo de previsão, seriam aclamados como "sábios" e seriam elevados a um patamar social mais alto. Com o tempo, essa estrutura social, nascida de uma conjunção de acasos (afinal, como explicar que numa comunidade de humanos, haja uma diferenciação efetuada a partir de aspectos não-biológicos, abstratos?), se cristalizaria, distanciando-se do motivo original de sua criação em direção a um conjunto de códigos sociais que determinariam a vida em sociedade; assim, a partir de uma estrutura ditada pelo acaso, nasce um conjunto de regras que dita quem ocupa qual posição na sociedade, e quais são os direitos de cada uma das camadas sociais.

Com o tempo, algumas pessoas, indignadas com essas restrições pré-existentes a sua liberdade de desenvolvimento pessoal, passaram a chamar essa rígida estrutura social de "injusta". Ao petrificar a ação do acaso, estendendo às gerações ulteriores a organização das anteriores, impedia-se um acesso equânime às oportunidades de vida.

Pensou-se ter resolvido essa injustiça com a criação da Loteria Humana. A Loteria era a personificação da própria Justiça, diziam seus defensores; por meio dela, qualquer um poderia ter acesso a uma vida digna. Ao aproximar-se da maioridade, todos os cidadãos se inscreviam na Loteria; esta, por sua vez, sortearia o destino de cada um deles, dando chances iguais a todos.

É claro que, com o tempo, criaram-se medidas para restringir o comportamento totalmente imprevisível e caótico dos sorteios da Loteria. "Uma pessoa, afinal, deve ter o direito de trabalhar em uma área com a qual tenha maior afinidade; além disso, certos trabalhos são impróprios para certas pessoas". Dessa forma, criticava-se de forma velada a disparatosa noção de que um jovem de boa índole (leia-se, de família rica) viesse a trabalhar como gari.

Assim, os sorteios passaram a levar em conta certos parâmetros da vida dos candidatos; aqueles que comprovassem possuir vastos conhecimentos e grande erudição (leia-se, aqueles que não precisavam trabalhar desde cedo e portanto tinham tempo e dinheiro disponíveis para adquiri-los) eram, segundo a lógica dos defensores das reformas na Loteria, obviamente mais apropriados para cargos de caráter administrativo ou especializado. Na prática, o que isso significava é que o resultado da Loteria acabava dependendo justamente dos fatores que ela se esforçava em combater.

É claro que havia aqueles que tentavam aproveitar-se dessa lógica, lutando ao longo dos seis ou doze meses anteriores ao sorteio para adequar-se o máximo possível ao perfil de indivíduo que costumava ser sorteado para os cargos prestigiosos; tudo o que importava era abandonar-se cegamente a um modelo, derreter sua própria estrutura para caber no molde fornecido.

Henrique, no entanto, caminhava orgulhosamente em direção ao prédio em forma de balança que sediava a Loteria; ele havia se recusado a curvar-se a essa vontade cega, a esse elogio da estupidez. Ele se inscreveria na Loteria e acolheria um destino incerto, tal e qual nos saudosos tempos do caldeirão biológico onde surgira a vida.

3 comentários:

Anônimo disse...

bom. parabéns.

devo confessar que estava esperando algo menos linear, no entanto...

Reggio Tartufo disse...

Li, finalmente. Está bom.
Mas realmente, pela sua descrição inicial do que seria "Fragmentos", parecia que seriam coisas totalmente aleatórias.

Anônimo disse...

não é justo (muito menos bom) que um cara como eu, vagal completo, ganhe por acaso um cargo de importância e do qual possam depender.