segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Ensaio sobre a visão

A luz fere os olhos; ela ofusca. Por isso, é muito mais fácil buscar o conforto da escuridão. No escuro, exalta-se o ego, a perspectiva própria, e há maior possibilidade de se esquecer a realidade circundante, de se ignorar as relações deste ego com os demais aspectos do mundo. A luz revela; a escuridão oculta. Encaremos a verdade: vivemos em um mundo demasiado cruel, que não corresponde a nossos ideais humanitários e civilizados. A todo momento tentamos escapar à esse conflito entre a realidade desejada e a observável, construindo modelos mentais da existência e prendendo-se a eles.

Mas nem tudo é maniqueísmo, é claro; por mais que se diga que com certas pessoas "é oito ou oitenta", com ninguém o é realmente. Da mesma maneira que olhar a luz por si própria - a realidade em si, e não suas manifestações; a onda de luz ao invés dos móveis nos quais ela se reflete - ofusca, a escuridão total desespera. Esse corte definitivo das relações com todo o resto (por mais ontologicamente discutíveis que elas possam ser - vide o texto de abril [caramba, já faz tanto tempo assim??] "You'll always walk alone") leva a todo o tipo de desordem mental e patologia. Já aqueles que olham diretamente para o Sol (o que inclui toda sorte de escritores, filósofos e grandes personalidades em geral) podem não queimar a retina, mas acabam fatalmente se afundando na depressão e abusando de álcool e drogas.

Não, o ser humano é uma criatura miriádica, e portanto não admite extremos; a humanidade não busca a escuridão total. Busca apenas uma iluminação sombria e difusa - o suficiente para que não perca a sua sanidade, mas que também não revele as fotografias sangrentas penduradas nas paredes. Talvez aquela criança esquelética seja apenas a nova peça da coleção de primavera da Prada; a foto dos soldados definhando no campo de batalha pode muito bem não passar de uma fotografia de jogadores num campo de futebol... não, não há nada com o que se preocupar, está tudo bem.

É aí que surgem duas forças opostas, tentando equalizar a balança mas cada uma partindo de um dos dois pontos extremos. Ao longo da história da humanidade, a mentalidade coletiva (ou seja, o grau de cinza específico de cada período, o ponto entre o preto e o branco que era consensual entre a maioria das pessoas) foi definida pela luta entre essas duas forças. Uma delas engloba atitudes como o engajamento político, o ativismo ambiental, a literatura de conscientização; a outra inclui a ficção, a alienação, a anestesiação e até (por quen não?) a arte. Desviando em maior ou menor grau a humanidade dos extremos - a insuportabilidade da luz e o desespero da escuridão - essas forças criam épocas distintas, do etéreo século XIX embebido em onirismo à engajada década de 60, numa constante oscilação em busca de um equilíbrio que inexiste porque depende de idéias em constante transformação e das ideologias vigentes. Viver apenas a realidade é descartar um aspecto fundamental do ser humano - a imaginação, a criatividade. Da mesma forma, perder-se em sonhos e abstrações significa abrir mão das bases concretas nas quais se desenrola a vida. Qual a mistura ideal? Em que doses luz e trevas devem se combinar para que possamos nos deslocar harmoniosamente pelo almoxarifado da vida, extraindo o máximo dos materiais ali dispostos e ao mesmo tempo deixando nossas marcas de forma satisfatória?

Há controvérsias.




Um esclarecimento
Na ótica ocidental, os conflitos são muitas vezes vistos como uma dicotomia maniqueísta, o famoso "bem contra o mal", "certo versus errado". Traduzindo essa lógica para uma esfera metafísica, encontra-se a oposição da luz com as trevas, representações do bem e do mal absolutos. Todo bom Cristão almeja à luz e teme a escuridão (e por "Cristão" não se está querendo necessariamente dizer "professante da fé cristã", mas sim "indivíduo educado nos valores judaico-cristãos"). A idéia do texto acima era propor uma nova interpretação desta metáfora; admito que ele acabou tornando-se uma coisa um pouco mais abrangente.

Outro esclarecimento
Com este texto, finalmente cumpro o desafio de inserir a palavra "almoxarifado" na minha próxima produção literária publicada.

Um pedido de perdão
Peço perdão pela falta de regularidade nas publicações; depois de um intervalo demasiado longo, eu e Tchubas acabamos postando um após o outro.

Outro pedido de perdão
Reparei que todos os meus últimos ensaios carregam uma visão um tanto pessimista da humanidade. Tentarei me redimir na próxima ocasião.

5 comentários:

Anônimo disse...

Ando temendo ultimamente q esse meu querido amigo acabe se tornando um "mendigo por opcao", uma daquelas pessoas q odeiam tanto a sociedade como ela é que se recusam a viver em seus moldes... (vide mendigo da pedroso de morais)

devo recomendar um livro para o senhor, q estou lendo e sempre identifico semelhancas entre o protagonista e voce: "Into The Wild"... o titulo em portugues acho q é "Na Natureza Selvagem"

Anônimo disse...

essa mensagem foi unica e exclusivamnte para o joao

qualquer um que venha m encher o saco por causa disso, que vá à merda.

Salpicão Mesquinho disse...

Eu não estava criticando (somente) a "sociedade como ela é"... era mais uma tentativa de interpretação da natureza humana. Admito que o seguinte parágrafo:

"Talvez aquela criança esquelética seja apenas a nova peça da coleção de primavera da Prada; a foto dos soldados definhando no campo de batalha pode muito bem não passar de uma fotografia de jogadores num campo de futebol..."

...seja um pouco mais voltado para a atualidade, o que pode levar à essa visão. Talvez eu devesse ter usado problemas mais essenciais, como a questão da morte, do tempo, etc.

Fábio disse...

Vocês são muito fodas caras :)

O João, dá uma passada no nosso, você tá linkado lá :)

Reggio Tartufo disse...

Muito bom João, n entendi porra nenhuma mas muito bom.
Minto, entendi a importância da inserção da palavra almoxarifado no texto.
Quanto à postagem consecutiva n tem problema. Vc e polvão leram e comentaram e vcs são os únicos que participam desse blog.

flw.