quarta-feira, 30 de abril de 2008

You will always walk alone

Já aviso logo de cara que para alguns este texto pode parecer um tanto quanto aquém do estilo leve e bem-humorado característico da grande maioria dos trabalhos reunidos neste diário virtual. O que me levou ao tema sobre o qual discorrerei são as divagações (sempre as divagações...) às quais fui induzido após ler a frase que serviu de base para a elaboração de uma intervenção humorística por parte de meu colega Reggio Tartufo em 28 de abril último (aos que não a leram, recomendo que o façam agora – ao menos para entrar em contato com a frase [em língua estrangeira, diga-se de passagem] em questão, uma vez que a publicação de hoje não está diretamente relacionada com aquela).

Começo o texto propriamente dito dizendo que as reflexões que apresentarei não surgiram apenas de minha própria mente, é claro – são o fruto da digestão e da apropriação de idéias já apresentadas por grandes escritores e filósofos do passado, dentre os quais cabe citar Aldous Huxley, Jorge Luis Borges, G. K. Chesterton e George Berkeley.

Este texto se propõe a ser uma refutação do lema do Clube de Futebol Piscina do Fígado (vulgo Liverpool Football Club), como já demonstra a versão negatória do supracitado lema que nomeia esta publicação. É claro que o inspirador lema original passa uma idéia animadora de união e companheirismo (que, quando forçado, cria a situação que levou o saudoso Tartuffo a tecer uma ácida crítica à sociedade de consumo); mas não passaria o companheirismo de um laço ilusório? É possível criar uma ponte autêntica com um outro ser humano?

Na minha opinião – e na dos grandes pensadores já citados – a resposta é: provavelmente não. Qualquer relação humana está fundada em pressupostos, uma vez que não se pode ter conhecimento verdadeiro do que é ser (no sentido mais profundo da palavra) outra pessoa. Supõe-se que os outros vêem o mundo da mesma forma que nós, obedecendo as mesmas relações espaciais e sensoriais. Mas é impossível provar efetivamente essas suposições. Quando eu e meu colega Reggio Tartufo afirmamos que uma maçã é vermelha (deixemos de lado as maçãs verdes, por obséquio), nada garante que estejamos vendo a mesma cor; ele pode enxergá-la como sendo pigmentada com a cor que eu chamo de azul, mas dirá que ela é vermelha porque se convencionou que a cor da maçã (e de uma série de outras coisas) é o vermelho. Desde que nossas duas realidades dissonantes mantenham a mesma lógica (ou seja, tudo o que eu vejo “vermelho” ele vê “azul” e assim por diante), nós poderemos nos entender perfeitamente sem saber que habitamos universos díspares. Isso ocorre porque não há meios para que eu entenda como ele (ou qualquer outra pessoa) efetivamente percebe a realidade; quem sabe? Talvez ele nem perceba cores, ou relações espaciais, e simplesmente use essas palavras para se referir a categorias da percepção inteiramente desconhecidas para mim.

Huxley definiu bem esse sentimento da intransponibilidade das barreiras que existem entre os seres humanos em um trecho de seu livro “As Portas da Percepção” (cujo nome, aliás, advém da mesma frase do poeta inglês Willian Blake que inspirou Jim Morrison a nomear sua banda de “The Doors”): “Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. (...) Como poderá o indivíduo, mentalmente são, sentir o que realmente sente o insano? Ou, salvo reencarnando como um sonhador, um médium ou um gênio musical, como poderíamos visitar os mundos que, para Blake, Swedenborg ou Johann Sebastian Bach eram seus lares?”

Diante desses pensamentos, que é o homem senão uma ilha, consciente de que existem outras ilhas perdidas na vastidão do oceano mas sem poder nunca vislumbrá-las? Ele poderá enviar mensageiros para as outras ilhas para tentar conhecê-las, mas esse conhecimento será sempre indireto e baseado em convenções como símbolos e linguagem – meras expressões de uma realidade que não pode ser sentida diretamente. É nesse sentido que todo indivíduo (como a própria palavra já diz, aliás) “sempre andará sozinho”: afinal, ele é uma ilha, um universo subjetivo particular e único. Por mais que esteja rodeada de outros indivíduos (cujo número – um, dez, mil – não importa), cada pessoa está confinada a seu mundo pessoal; só ela poderá suportar suas próprias dores, e só conseguirá sentir sua própria alegria.

Este argumento pode ainda ser levado ao extremo, ao se teorizar que o único indivíduo com existência independente sou Eu, uma vez que não posso nunca saber se as outras pessoas existem da mesma forma que Eu existo. Esta teoria é chamada de solipsismo; o modo como classifica o que os outros elementos da realidade são (sonhos, simulações de computador, produtos da imaginação do próprio indivíduo, etc.) determina suas variantes. O solipsismo é a negação total do lema do Liverpool – não só o indivíduo está eternamente sozinho, como também não há possibilidade alguma de estabelecer contato com um outro, uma vez que é a única entidade existente. É desnecessário dizer que esta é uma teoria extremamente controversa e que por sua própria natureza não pode ser provada; abster-me-ei de aprofundar-me em suas implicações, até porque eu seria um idiota se estivesse escrevendo para um bando de pessoas inexistentes.

Creio já ter digredido demais; espero não ter sido por demais enfadonho nessa viajada dissertação. Achei que seria interessante trazer ocasionalmente alguns questionamentos filosóficos aqui para o DCC, e vi a oportunidade de concretizar parte dessa esperança ao perceber a viabilidade do compartilhamento das reflexões em mim suscitadas por uma fonte deste próprio diário virtual. Em nosso próximo encontro, prometo abarcar um tema mais leviano (e quem até humorístico, atrevo-me a dizer). Aliás, RT, proponho-me a ser o escritor de Sexta, uma vez que já possuo uma idéia que se encaixaria nessa data.

(Em tempo: cabe ainda dizer que hoje foi a sensacional estréia [e último jogo oficial também, infelizmente] do imbatível Sedentários F. C. Foi um jogo marcado pela imensa superioridade técnica dos Sedentários, que demonstraram criatividade, coordenação e habilidade; no entanto, a arbitragem injusta, que limitou-se a expulsar apenas três dos malfeitores do outro time, acabou por causar nossa derrocada. Todos concordaram, porém, que nosso time foi o campeão moral da partida)

Um abração do

Salpicão

3 comentários:

Anônimo disse...

oOOOOOOO
Dimas melhor que o Eto'o!!!

Reggio Tartufo disse...

Seu texto está estupendo, e totalmente cabível ao ambiente em que se encontra, que é majoritariamente humorístico, mas não exclusivamente.

Achei uma brechinha no FF p/ vir ler. Pode postar 6ª, n vou ter tempo mesmo.

Abçs

ps: You'll never walk alone.

Maurício disse...

"you'll never walk alone."
-Oscar Hammerstein II

pois é. Somos uns ultraromânticos necrófilos mesmo.