quinta-feira, 15 de maio de 2008

Um piruá dissonante

(Glossário - Piruá: grão de milho para pipoca que [ainda] não estourou)

Existia em um certo microondas um saco de pipoca em pleno processo transformativo. Vários segundos (uma eternidade, do ponto de vista de uma pipoca) já haviam se transcorrido desde o início do aquecimento, e uma sociedade bastante hierarquizada existia lá dentro - as sábias pipocas já estouradas mantinham a paz e a harmonia, orientando com sua experiência os jovens piruás que ainda aguardavam o momento de epifania em que se transformariam em pipocas totalmente aptas para a fatídica jornada rumo ao estômago.

Existia nesse saco, porém, um piruá diferente dos outros. Esse era um piruá bem estranho: aquecido pelas ondas do aparelho, ele vibrava em uma freqüência diferente da dos outros piruás. Quando todos os outros grãozinhos lançavam-se para cima, ele mergulhava rumo ao fundo do saco; e nos momentos de calmaria em que o som das novas pipocas a estourar cessava, ele era sempre o mais agitado.

Naturalmente, esse piruá dissonante era bastante excluído por seus jovens colegas, que o achavam esquisito e diferente deles; nas divertidas brincadeiras travadas por todo o saco (que consistiam basicamente em pular para todos os lados), ele era sempre deixado de lado. Porém, desde a mais tenra infância ele havia conquistado a admiração das pipocas mais velhas. As pipocas hippies, que tinham sal demais e por isso viviam em um estado de constante loucura, o viam como um exemplo de renovação e mudança, um piruá que, apesar de ser um entre muitos, tinha forte senso de personalidade e caráter - elas achavam que, quando ele fosse uma pipoca como elas, o ex-piruá alcançaria níveis de consciência inimagináveis e saberia como enfim viver em harmonia com o Grande Microondas e o Mundo Além. Já as pipocas mais conservadoras, que haviam ouvido histórias do tempo em que as pipocas viviam em confortáveis panelas ao invés daquela claustrofóbica prisão dupla saco-microondas, viam aquele piruá como o Messias sobre o qual tinham ouvido inúmeras profecias; elas acreditavam que um dia ele as libertaria, levando-as para viver no utópico paraíso chamado Milharal.

Por isso, aquele piruá era observado de perto com grande ansiedade pelas pipocas; elas tinham muitos sonhos sobre o tempo vindouro no qual ele se transformaria em pipoca e realizaria façanhas inimagináveis, tornando-se uma pipoca lendária que seria lembrada por muito tempo. Sempre que ele dava algum pulo mais brusco, todas as pipocas do saco prendiam a respiração, achando que a hora derradeira enfim chegara, mas todas estas ocasiões se provaram alarmes falsos.

E assim todos os piruás foram estourando e a população de pipocas foi aumentando. Até que em certo momento, quando os barulhos de formação de novas pipocas já haviam se tornado raros, o piruá-prodígio começou a vibrar loucamente, com mais energia do que nunca; a atenção de todas as pipocas se voltou imediatamente para ele - enfim chegara a tão aguardada ocasião! Ele começou a vibrar mais e mais, na sua curiosa freqüência anormal, até que...

...

...carbonizou. Era um piruá estragado.

Inspirado pela professora Ana Bruner

6 comentários:

Reggio Tartufo disse...

Imagino que haja uma simbologia por detrás dessa história. Talvez seja o trem da vida.
Mas o que mais me intriga é: como pode Ana Bruner ter sido quem te inspirou?

Ah, claro. Gostei do texto, n sei realmente se eu peguei toda a filosofia que ele quer passar, mas está muito bem escrito, como sempre.

Flw!

ps: sou mais a Mitiko como professora fonte de inspiração - heheeh.

Salpicão Mesquinho disse...

Ana Bruner deu a palestra de Filosofia naquele dia das profissões. Na ocasião, ela disse que usava o piruá como metáfora da fase da adolescência, quando a pessoa está no ponto de passar para a vida adulta (achei que isso dispensasse explicações); o que eu fiz foi pegar essa metáfora e colocar um toque crítico.

Reggio Tartufo disse...

A redação do seu texto está muito clara e deixa explícito que a transformação do piruá em pipoca trata-se de uma transição e de um amadurecimento, mas pode sempre haver mais coisas por detrás dessas figuras, metáforas.
O que realmente me intrigava era o seu contato com a Aninha, agora estou mais aliviado.

ps:qjjsm

Salpicão Mesquinho disse...

"mas pode sempre haver mais coisas por detrás dessas figuras, metáforas."

Sim, e há

Anônimo disse...

Pinto! Pinto!

Anônimo disse...

FAP, falou pouco mas falou bem.