terça-feira, 20 de maio de 2008

História de duas vidas

Alberto Brás retirou o dedo do identificador de impressão digital e, ignorando a voz robótica que já ouvira tantas vezes que havia sido completamente abstraída de sua percepção, adentrou seu apartamento de cobertura na Vila Olímpia. Com uma rápida olhada ao redor, verificou se tudo estava em seu devido lugar no amplo hall de entrada (mas é claro que estava, como ele era tolo, tudo sempre estava em seu devido lugar, e ai daqueles malditos serviçais se não estivesse) e depositou cuidadosamente sua pasta na posição de praxe, sentando-se na sua poltrona favorita e afrouxando o colarinho. Esperou que a jovem criada que lhe servia à noite – Maria, Marta, um desses nomes, mas afinal, que importância isso tinha – trouxesse a bandeja de prata com o costumeiro copo de uísque com duas pedras de gelo, a repetição quase imemorial do ritual noturno trazendo bem-estar e alívio do caótico mundo lá fora. Mas hoje algo estava diferente – talvez fosse algo no ar, ou o uísque fosse de uma marca diferente, ou ele estivesse com um princípio de doença – porque as coisas não pareciam as mesmas, e ele foi acometido por uma súbita sensação de estranhamento que o surpreendeu. Mas se tudo estava exatamente como sempre, essa rotina que fluía com a precisão de relógio e o dava conforto e prazer, então o quê?... Mas não, devia ser doença mesmo, e o melhor era dormir. Deixou o copo de uísque cheio pela metade em uma mesinha – algo que nunca havia feito – e foi deitar-se. Porém, não foi enfastiado por infindáveis minutos insones como sempre ocorria – pelo contrário, o sono veio rápido, e ele sonhou que era Dairin Vaughan, o mais temido guerreiro das terras ao norte do caudaloso Eiridrin. O doce trinado da Nainsí, a ave cujo canto é diferente para cada ouvinte (e que para ele soava como um riacho de sua terra natal, um remoto vilarejo cravado no coração das cordilheiras do leste), havia acabado de despertá-lo; lavou-se e vestiu-se, e, ao descer, encontrou dois soldados ostentando imponentemente a armadura azulada cravejada de jóias da guarda do Protetorado. “É chegada a hora”, disse um deles, e não foi necessário dizer mais; Vaughan entendeu que as tropas da Confederação de Tyr estavam finalmente se aproximando das planícies da região sul do Protetorado, e era hora de o exército agir em resposta. O soldado lhe disse que ele tinha três horas para preparar sua jornada antes de se apresentar à praça central, onde as tropas seriam reunidas – porém, Vaughan não precisaria desse tempo: se havia algo que anos de luta constante lhe haviam ensinado, era estar sempre preparado para fugir ou partir. Reuniu um pacote de roupas, algumas provisões, seus apetrechos de guerra e, por último, Erduil, sua espada fydd, forjada especialmente para ele pelo mais hábil Domador de Minério da Fenda da Valquíria. Montou em Gallahad, seu corcel branco, e partiu para a praça, onde foi apresentado às fileiras que seguiriam suas ordens – um bando de recrutas mal-treinados e provavelmente pouco familiares com as privações da guerra, não que ele esperasse outra coisa, porque afinal a conduta militar do Protetorado havia afrouxado muito desde sua juventude, e agora estavam pagando o preço nessa inesperada guerra contra a Confederação, e era melhor que os dois engraçadinhos ali do fundo parassem de rir porque ele esperava que seus subordinados se portassem de forma adequada, entendido? – e, após os generais receberem as últimas recomendações dos estrategistas militares, a marcha do exército se iniciou. Foram horas penosas, que prenunciavam as dificuldades que ainda estavam por vir – a alegre mentalidade urbana se evaporava enquanto elas marchavam sob o sol a pino para longe da alegre cidade de Líoch através das areias escaldantes da Planície do Sol Eterno, e até Vaughan teve de lutar para esconder o medo que sentia da macabra Floresta Sussurrante, onde montaram acampamento naquela noite. Ao se deitar em seu lugar na tenda dos comandantes, ficou aliviado em enfim ser abraçado pelo sono, e ser arrebatado por um vívido sonho no qual era Alberto, que acordava confuso daquela estranha noite. Sentado na cama, chacoalhou a cabeça para espantar os macabros sussurros que assombravam a floresta de seu sonho. Estranho, definitivamente estranho... não só o tema de seu sonho como o fato de ele se lembrar dele eram coisas absolutamente incomuns. Seus sonhos geralmente se amontoavam a um punhado de recordações confusas sobre escritórios e pastas arquivadas fora do lugar, quando muito; aquele sonho barroco, com suas vívidas imagens surreais, não se assemelhava em nada à idéia que ele tinha de uma noite de intensa atividade onírica. Lembrando-se da noite anterior, ele não podia deixar de ligar aquilo à sensação de mal-estar... – não, não era mal-estar, antes um certo estranhamento... – que ele havia experimentado. Suas divagações começaram a ser perturbadas por uma vaga inquietação, e demorou alguns instantes para que ele percebesse o que estava errado – o entendimento fulminante veio quando ele pousou os olhos com maior atenção sobre o mostrador do relógio no criado-mudo. Dez e trinta e sete! Meu Deus, ele estava terrivelmente atrasado para o trabalho! A troca de roupa foi severamente dificultada pelo estado de agitação e nervosismo no qual ele se encontrava, que piorou quando o chofer lhe informou que não conseguia encontrar a chave do carro, levando sua mão trêmula a derramar a xícara de café na camisa. Após perder ainda mais tempo trocando a roupa manchada, ele informou o silencioso chofer que tanto amaldiçoara minutos atrás de que iria pegar um táxi, pois já estava terrivelmente atrasado... enquanto esperava o elevador, perguntou à Mariana, ou seria Muriel, ao diabo com o nome da maldita mulher, porque não lhe chamara quando havia percebido que ele não acordara no horário habitual... não, não me venha com essa de eu achei que o patrão queria dormir um pouco mais hoje, você sabe muito bem que essa residência tem horários, e os horários têm de ser respeitados... mas aí está a droga do elevador, como demorou, terminaremos esta conversa à noite. Lá embaixo, um maldito trânsito dos infernos, mas esta avenida nunca fica parada assim... era um complô, tudo só podia ter sido combinado para estragar de vez seu dia. E pensar que tudo isso estava acontecendo porque havia dormido mais de duas horas a mais do que era de costume, o maldito sonho se infiltrando nas engrenagens cuidadosamente lustradas da rotina e enferrujando-as... quando enfim chegou ao local da importantíssima reunião bimestral do departamento financeiro, foi chamado de lado pelo diretor de RH e veja bem, seu Brás, não é que o senhor não seja estimado pela empresa, o pessoal da Ellipsis bem sabe o quanto o senhor fez pelo bem dessa corporação, mas é que a queda das ações, e a necessidade de contratar pessoal novo, o senhor bem concordará que um toque de frescor de vez em quando é muito recomendado... mas não, não tentem me fazer compreender, vocês não reconhecem o meu trabalho, logo eu que me mato diariamente para fazer essa empresa ir pra frente, vocês não têm o direito de me demitir, não têm, por favor não se exalte, senhor Brás, vou ser obrigado a chamar o pessoal da segurança, ninguém aqui trabalha tanto quanto eu, estão ouvindo? Ninguém! Se a Ellipsis está onde está hoje, é por minha causa, me solte, seu gorila, você sabe quem eu sou? Mas lá fora ninguém sabia quem ele era, e tudo era hostil, as cores difusas da cidade se confundiam em seu desespero, e era claro que ele tinha sido demitido porque tinha chegado atrasado, só porque tinha chegado atrasado, e era tudo culpa daquele noite amaldiçoada, e me dê mais uma cerveja, barman. O mundo agora era só um borrão multicor confuso e indistinto, e sua percepção estava tão embaralhada que ele nem notou quando foi agarrado pelas mãos reconfortantes do sono, e jogado de volta para o chão duro da floresta. Seu corpo doía inteiro; ele estava bem acostumado a dormir nos piores lugares, mas esta noite havia sido turbulenta e mal-dormida, provavelmente se mexera bastante, quando na noite daquele dia remoto no qual matara um soldado inimigo pela primeira vez. Levantou-se zonzo, levemente irritado por não ter conseguido descansar plenamente como esperara. Mas agora era preciso levantar de qualquer jeito e encarar as dificuldades do dia que raiava. Os recrutas já desmontavam o acampamento, e o exército foi rapidamente reunido e ordenado, preparando-se a marcha. Um dos outros comandantes o chamou para um canto afastado e o colocou a par de notícias enviadas recentemente pelas sentinelas avançadas. Parecia que as tropas da Confederação estavam progredindo mais rapidamente do que o previsto. Talvez a batalha não se desse no Vale de Elnor conforme os estrategistas do Protetorado haviam planejado; talvez eles atingissem uma possível zona de combate nessa mesma noite. Vaughan despediu-se de seu colega com o pretexto de organizar as fileiras de seus subordinados; no entanto, o que ele mais queria era conseguir esconder a apreensão que ele sabia que não seria capaz de impedir de transparecer em seu rosto. Apesar de ocupar um posto equivalente ao de todos os outros generais, ele Vaughan era uma espécie de líder informal daquele exército; sua experiência no campo de batalha ultrapassava a de qualquer outro soldado ali presente, e sua perícia nas artes da guerra era bem conhecida. Se ele conseguisse se manter calmo e confiante, ao menos na aparência, então talvez os outros soldados se refugiassem no pilar de sua segurança (e ele sabia, é claro, que o outro comandante lhe havia informado dessas novas menos para mantê-lo a par dos acontecimentos do front do que para testar sua reação). Vaughan estava consciente de seu dever de ser um raio de luz cortando as nuvens negras da tempestade vindoura; sim, pois as coisas iam de mal a pior. O Protetorado havia sido pego completamente desprevenido por essa súbita invasão, e seu exército despreparado e mal-treinado não era páreo para as disciplinadas tropas da Confederação. Para vencer esta batalha, eles dependiam de dois únicos trunfos: o medo e a admiração despertados respectivamente em inimigos e aliados pela figura lendária de Dairin Vaughan, e as estratégias de batalha cuidadosamente planejadas com antecedência. Agora que um imprevisto havia feito ruir esse apoio estratégico, Vaughan sentia em suas costas o enorme peso de ser, simbolicamente, a única esperança de milhares de pessoas – como ele poderia atender todas essas expectativas se nem ele estava confiante quanto ao futuro? A única coisa que lhe restava era o brilho ofuscante do inevitável, mas não era mais possível desviar os olhos, ainda mais agora que o encontro derradeiro havia sido adiantado em um ou dois dias. As histórias narravam o modo destemido como ele sempre caminhava para a batalha, mas isso era obviamente uma invenção romântica – não havia nada que lhe inspirasse mais medo do que a aproximação de um conflito armado, a possibilidade contínua de perder sua vida, que por sorte (ou por milagre) sempre havia sido poupada. Dessa vez, porém, ele tinha um mau pressentimento. Não era difícil estimar o resultado da batalha – as tropas do Protetorado estavam em clara desvantagem – mas ele sentia algo mais carnal, mais profundo... um sentimento que lhe fora inspirado pela primeira vez no dia anterior, mas que agora se reforçava como um presságio de um desfecho desagradável – talvez a morte, talvez a derrota e escravização, talvez a invalidez, talvez algo que ele não conseguia expressar com palavras mas que temia mais do que todas as outras coisas – para aquela batalha. O estranho sonho que tivera naquela noite e que agora começava a recordar flutuou no caos de seu pensamento, juntando-se à onda turbulenta que abalava as próprias estruturas de seu ser. As vívidas imagens de um mundo estranho e distante que havia visitado durante a noite e onde havia entrado em desespero por algum motivo que agora lhe fugia povoaram seu pensamento enquanto o novo acampamento era montado naquela noite, próximo a um desfiladeiro que eles teriam de descer à duras penas no dia seguinte. Mas tudo aquilo começou a parecer irreal e disforme quando ele deitou-se para dormir; e novamente ele foi envolvido, e novamente acordou em um corpo que lhe pareceu estranho, se bem que não era só seu corpo, mas sim todo o mundo à sua volta. As dores espalhadas pelo corpo lhe deram a primeira pista de que ele não havia dormido em sua confortável cama. Essa suspeita foi confirmada quando sua visão voltou ao foco e ele percebeu que estava em um banco de praça. Com a lucidez crescente, que começava a ordenar o caos da multitude de impressões que invadia seus sentidos e disputava sua atenção, que ele percebeu que aquilo que até então sentira como um incômodo insuportável era na verdade uma terrível dor de cabeça. Sua memória era confusa e embaralhada, pouco mais que um borrão etéreo; ao tentar remontar os eventos que o haviam levado até aquele banco onde dormira, sentia-se como se tivesse quebrado um espelho na noite anterior, e agora se esforçasse freneticamente para recompor os cacos, para poder enfim fitar seu próprio rosto. Sentia que tinha motivos para ficar furioso; mas sim, realmente, ele estava absolutamente certo em se sentir daquele jeito, pensava lembrar que havia sido despedido, mas a dor de cabeça ofuscava seu pensamento, mas sim, tinha certeza agora, os filhos da puta o tinham despedido, justo ele, que passara anos naquela empresa, e não seria exagero dizer que a tinha feito crescer com suas próprias mãos... mas não, esse mundo estava perdido, não se sabia mais apreciar o trabalho dos outros, e agora se lembrava do bar, da noite desconsolada cujas últimas horas, porém, ainda se escondiam atrás de um véu impenetrável, mas certamente devia ter enchido a cara, e agora um súbito mal-estar o fazia vomitar na grama, e pelo menos agora se sentia um pouco melhor. Ilusão passageira, porém; aí estava ele, destruído, dormindo na rua, derrubado, tendo assistido a desconstrução de tudo quanto fizera... fora humilhado, levado a se rebaixar, e agora estava aqui... o desespero da noite passada voltava com força total, e misturava-se à ressaca para criar um vazio, um vácuo absoluto que ofuscava qualquer esperança. Seria impossível reconstruir-se, pensava Alberto enquanto caminhava pela fria calçada sem rumo definido, e agora uma idéia que já lhe tinha ocorrido em surtos de depressão anteriores lhe brotava novamente, e dessa vez não era descartada prontamente como loucura, talvez por ser apenas um comando mecânico no fundo da mente ofuscado pelo peso mais tangível da desilusão e do esvaziamento do sentido de tudo quanto o rodeava. Assim, ao olhar para a esquina seguinte e confirmar que o momento era propício, não pensou duas vezes antes de jogar-se na frente do carro que vinha à toda velocidade, e acordou assustado, o coração acelerado; algo não estava certo, sentia uma dor terrível espalhar-se pelo corpo todo, e ao tentar se levantar soltou um urro de desespero motivado pela dor dilacerante oriunda de sua barriga. Olhando para baixo, viu uma espada cravada no centro de uma mancha de sangue, e empalideceu. O tempo pareceu parar, e os ruídos caóticos ao seu redor pareceram emudecer – agora que prestava atenção, surpreendia-se por não ter sido acordado mais cedo pelo clamor de combate que chegava aos seus ouvidos de todas as direções, a não ser que a luta tivesse acabado de começar, mas isso também era apenas um pensamento sem importância no fundo de sua mente – e o desespero focou a miríade de pensamentos desordenados em uma única linha de raciocínio. Tentou levantar-se, mas a dor era insuportável e ele foi obrigado a ficar deitado; conseguia ver as costas de uma pessoa desconhecida vestida de negro que no momento ocupava-se em revistar as posses de Vaughan, provavelmente em busca de algo de valor, mas isso pouco lhe importava agora. Então era isso? Finalmente morreria, assassinado covardemente, sem nem mesmo ter tido a chance de demonstrar seu valor no campo de batalha, desbancando todas as expectativas ou obtendo uma morte honrada? Sentia o pensamento dificultar-se, o raciocínio tornando-se truncado, alguém gritava desesperadamente por uma ambulância... tolos! Pretendiam salvá-lo? A vida era dele, e, se havia escolhido terminá-la ali, quem eram eles para impedi-lo e forçá-lo de volta a uma existência fracassada? Como teriam conseguido pegá-los de surpresa? E quanto às sentinelas? Teria havido traição? Via fogo dançando através do tecido da tenda, e a dor agora tomava conta de todo o seu ser, os últimos ruídos eram enfim abafados e, sentindo sua consciência esvair-se, fechou os olhos e foi abraçado pela escuridão. Ali, no êxtase final, a última fronteira da existência humana, os dois corações que pararam de bater tornaram-se um; dois seres tão distintos quanto díspares, cujas existências eram separadas por uma distância infinita – absolutamente intangível e absolutamente intransponível – porém unidas por um misterioso acaso, tornaram-se um único ser, nem Alberto Brás nem Dairin Vaughan, mas uma soma maior que as partes, um milagre da aritmética num universo além da aritmética. Em algum lugar desconhecido, uma das páginas de um inimaginável Livro Absoluto era escrita, pondo fim à estranha história de duas vidas que na verdade era a história de uma única vida.


***

Apesar de não estar totalmente satisfeito com a primeira versão desse conto, resolvi postá-la aqui. Futuras versões trabalhariam melhor o espelhamento entre os dois universos, com elementos de um interferindo e se intrometendo no outro; as próprias personalidades dos dois personagens seriam modificadas pela influência de suas respectivas contrapartes. E se você teve saco de ler até aqui, muito obrigado pela atenção.

3 comentários:

Reggio Tartufo disse...

De nada. Eu que agradeço a oportunidade.
Ficou bom, mas, conhecendo a origem, concordo com seu comentário de que futuras reelaborações o aperfeiçoariam.

Flw!

Anônimo disse...

"o maldito sonho se infiltrando nas engrenagens cuidadosamente lustradas da rotina e enferrujando-as..."
Genial.

Parabéns.

Anônimo disse...

azul + vermelho = roxo